domingo, 28 de abril de 2013

Entrevista Oliver Sacks

folha de são paulo

O cérebro alucinado
Sacks sobre seu livro, Freud e "Os Muppets"
RAFAEL GARCIARESUMO No recém-lançado "A Mente Assombrada", o neurologista britânico Oliver Sacks põe seu talento de narrador para descrever alucinações suas e de pacientes. Nesta entrevista, ele comenta as diferentes alucinações (por drogas, distúrbios cerebrais ou psíquicos), os avanços da neurociência e a psicanálise.
Médicos não costumam incluir suas experiências pessoais em antologias de casos clínicos: existe uma compreensível preocupação em analisar objetivamente os pacientes, e anedotas autobiográficas não convêm a trabalhos técnicos. Há aqueles, porém, cuja experiência subjetiva é inescapável --e um deles é o tema do novo livro do neurologista britânico Oliver Sacks, 79, recém-lançado em português, sob o título "A Mente Assombrada " [trad. Laura Teixeira Motta, Companhia das Letras, 288 págs., R$ 45].
A percepção de imagens, sons, cheiros e sentimentos à margem da realidade só pode ser estudada por meio de relatos verbais, e o autor os recolheu aos montes. Só decidiu incluir suas próprias experiências mais tarde, diz Sacks, como recurso literário: a primeira pessoa daria mais força ao livro. Se ele já tinha lançado mão dela em sua estreia, "Enxaqueca", de 1970, foi de maneira tímida. Em "A Mente Assombrada" ele se torna, de certo modo, o personagem central.
Sacks compartilha suas incontáveis experiências alucinógenas com anfetaminas, morfina, abstinência de soníferos e até com os efeitos colaterais de uma droga antimalária que tomou no Brasil. Guardadas desde a década de 1970, quando a literatura psicodélica estava na moda, as confissões desse quase octogenário têm um sabor deliciosamente anacrônico.
Ir a seu escritório no West Village, em Nova York, também é uma viagem no tempo. É nesse pequeno apartamento atulhado de livros que o escritor e suas duas assistentes trabalham. Sacks recebeu a Folha na manhã da segunda-feira passada, após se submeter a uma sessão de psicanálise.
Psicanálise e sua relação com a neurociência, os diferentes tipos de alucinações relatados no livro e o estado dos estudos do cérebro estão entre os temas da entrevista abaixo. Na segunda parte, disponível em folha.com/ilustrissima, Sacks fala de seu processo de escrita, das viagens que fez ao Brasil, da música de Bach e outros temas.
Folha - No livro, o sr. narra suas próprias experiências --alucinações pré-sono, sob efeito de drogas psicoativas e até um episódio de "delirium tremens". Por que levou tanto tempo para compartilhá-las com os leitores?
Oliver Sacks - Sempre estive em busca de mim mesmo como paciente. Em muitos de meus livros, eu era uma das pessoas citadas: sou o caso número 75 em "Enxaqueca". E acredito que sou constituído da mesma coisa que qualquer outra pessoa. O que é especial em relação às alucinações é que não dá para descrevê-las de fora. São uma experiência pessoal.
Quando senti que era hora de escrever um livro sobre alucinações, comecei a pensar em algumas das coisas que aconteceram comigo há mais de 40 anos, num período específico, e me perguntei: "Por que não descrevê-las?". Mas elas foram uma das últimas coisas a entrar no livro.
Quando eu estava no hospital, com a bacia quebrada, conversando com um amigo, ele me disse: "Você volta e meia menciona essas coisas dos anos 60. Pode dar mais detalhes?". Eu meio que escrevi um esboço das histórias e entreguei a ele. No dia seguinte, quando ele voltou, eu o recebi dizendo: "Você sabe que não dá para publicar isso aí". Ele respondeu: "Dá, sim". E publiquei. [Risos.]
Não acho que seja grande coisa. [O escritor russo Leon] Tolstói disse que tudo o que ele escreveu era parte de uma grande confissão. Talvez essas histórias sejam parte da minha confissão, mas também as considero parte de uma descrição clínica, como é o livro inteiro.
No livro o sr. conta como era comum que pessoas que ouviam vozes ou tinham outras alucinações auditivas de origem neurológica e não psiquiátrica fossem falsamente diagnosticadas como esquizofrênicas. Foi preciso um estudo em que estudantes se disfarçavam de pacientes para revelar o problema. Isso ainda ocorre?
É certo que o estudo nos deixou chocados. Não posso dar uma resposta clara à sua pergunta, mas vozes em geral --especialmente quando são acusatórias, dão ordens ou têm algo de desagradável-- volta e meia são diagnosticadas como esquizofrenia. Mas muita gente só ouve vozes ocasionalmente --escutam alguém dizer seu nome, coisas assim. Talvez sejam 10% da população. O livro menciona pessoas que ouviam diversas vozes, mas não são psicóticas.
O sr. conta no livro que suas alucinações amazônicas ocorreram por causa de um medicamento antimalária que o sr. estava tomando por precaução. Nessas imagens o sr. também enxergou coisas do Brasil?
Foram alucinações que tive quando estava com febre e diarreia. Não tinham nada a ver com o Brasil. Eram apenas as imagens de um estranho mundo específico situado no século 19, mas um no qual não tenho muito interesse [o livro menciona cenários de Jane Austen]. Preferia que fossem sonhos com florestas tropicais.
E fiquei surpreso quando aqueles sonhos alucinatórios tão vívidos continuaram, mesmo após eu ter voltado para Nova York. Desde que o livro saiu, já recebi várias cartas de pessoas que estavam tomando o mesmo medicamento e tiveram experiências similares.
O livro cita experimentos que relacionam tipos de alucinação a áreas específicas do cérebro. No passado essas descobertas dependiam de neurocirurgias ou de estudos de lesões cerebrais, mas hoje saem das máquinas de ressonância magnética funcional. Alguns cientistas acusam essa tecnologia de alimentar um novo tipo de frenologia, a disciplina que fracassou ao tentar explicar a mente pelo formato do crânio. A abordagem "geográfica" do cérebro está indo longe demais?
Concordo em parte. Tanto o fMRI [ressonância magnética funcional] quanto o pet-scan [tomografia por emissão de pósitron] mostram apenas picos de aumento de fluxo sanguíneo nessas áreas cerebrais. Supomos que acompanhem os picos de atividade, mas não mostram as conexões. E tudo no cérebro é conectado reciprocamente.
O que precisamos descobrir são esquemas de fluxo, não mapas de pontos. Idealmente, precisamos buscar conhecer todo o tráfego no cérebro. Esses estudos já começaram a ser feitos, mas ainda são incipientes. Sou sensível ao temor de que o fMRI leve a uma nova frenologia, e ainda me atenho largamente a descrições clínicas clássicas.
No livro, descrevo uma paciente com uma lesão no lobo occipital [área visual do córtex cerebral] que teve alucinações em metade de seu campo de visão, sobrepostas à realidade. Numa delas, ela enxergava Caco, o sapo do programa infantil "Os Muppets". E ela se perguntou: "Por que o Caco? Ele não significa nada para mim". Não creio que exista uma área cerebral dedicada ao sapo Caco, é claro. Se ela existe, não vamos encontrá-la.
Às vezes é interessante tentar rastrear a origem de certas alucinações naquilo que as pessoas estiveram observando ou vivendo. Isso é importante e crucial em alucinações traumáticas. Esse é provavelmente o ponto mais próximo da psicose ao qual eu chego no livro. Esses traumas geram, de certa forma, uma psicose limitada, ligada a um evento específico. E podem ser bem perigosos. Muita gente que sobrevive a situações de quase morte sofrem muitos danos psicológicos e neurológicos.
Já que o sr. citou a aparição do sapo Caco, gostaria de saber como é sua relação com a psicanálise. O sr. reconhece que muitos tipos de alucinações não têm valor pessoal nem emocional. Psicanalistas não podem cair na armadilha de tentar interpretar alucinações que na verdade não têm sentido?
Não posso falar em nome de todos os psicanalistas, mas posso falar do meu analista, que acabo de encontrar hoje cedo. Estou com ele há 48 anos. Como às vezes puxo o assunto, ele diz que agora presta atenção nisso. Ele diz que, antes de pegar no sono, volta e meia vê dúzias ou centenas de rostos que não reconhece e que não têm nenhum significado. Ele, em particular, não insiste em buscar significado para tudo. Mas às vezes o significado existe.
Dou um exemplo em "Alucinações Musicais". Um sonho que eu tive continuou como alucinação e me perturbou muito. Eram canções que eu ouvia em alemão, e eu não falo alemão.
Telefonei para um amigo, contei a ele, e ele me pediu para assobiar uma delas. Assim que o fiz, ele perguntou: "Você abandonou um paciente jovem ou matou uma ideia literária incipiente?". Respondi: "Fiz as duas coisas ontem".
Como ele adivinhou? Ele reconheceu a melodia de uma das "Kindertoenlieder", de Mahler [canções sobre morte de crianças]. A alucinação desapareceu assim que foi analisada.
Não foi o caso das alucinações do pai de Charles Bonnet, que eu menciono no livro. [Na síndrome de Bonnet, pessoas que perdem a visão aos poucos têm alucinações visuais cada vez mais complexas.] Ele as descreveu num caderno que ficou perdido por mais 150 anos e só foi encontrado em 1902, pouco depois de Freud publicar "A Interpretação dos Sonhos".
Psiquiatras capturaram o material achando que seria um caminho dourado para o inconsciente, mas não conseguiram tirar nada dele. Mas existem, sim, formas de alucinação que por certo têm a ver com as disposições das pessoas. Talvez seja o caso das alucinações religiosas.
Meu analista certamente não impõe interpretações ou símbolos sobre mim. Ele é muito aberto. Acredito que, para ele, as relações são mais importantes do que interpretações em particular.
Como o sr. vê a teoria freudiana? Psiquiatras e neurologistas nos EUA sempre resistiram a adotá-la.
Acho que as noções de um inconsciente dinâmico, de repressão, de dissociação e de regressão continuam sendo válidas. Alguns neurocientistas, como Eric Kandel, se preocupam em conseguir achar as bases neurológicas desse tipo de coisa. Mas ninguém mais fala hoje, por exemplo, em pulsão de morte [tendência à autodestruição], que é vista como aberração.
Acho importante que as pessoas, quando tiverem tempo, possam conversar e pensar sobre sintomas em suas vidas na presença de um especialista desapaixonado que possa conhecê-las bem.
A nova tendência de buscar terapias rápidas talvez seja economicamente necessária, mas creio que uma forma de psicanálise continuará persistindo. São Paulo, aliás, parece ser um lugar com uma quantidade de psicanalistas fora do normal.
O presidente Barack Obama anunciou um pacote de estímulo de US$ 100 milhões para a neurociência, e a promessa é que isso dê início a um mapeamento do cérebro humano, tal como o Projeto Genoma mapeou o DNA. Aquele sucesso pode ser repetido?
Sim, mas o valor do mapeamento vai emergir sobretudo quando ele for ligado a outros estudos. A extrema complexidade do cérebro tem nos derrotado. São 100 bilhões de neurônios, cada um conectado a outros neurônios por milhares ou dezenas de milhares de sinapses. Não temos muita informação no nível que importa. O fMRI e o pet-scan observam áreas grandes demais. Com um só eletrodo é possível analisar uma única célula, mas talvez precisemos observar milhares, conectadas de diferentes maneiras. A tarefa é enorme.
Mas fico feliz que esteja sendo investido dinheiro nisso. Acredito que seja uma pesquisa potencialmente muito válida. Vivemos num tempo em que pesquisas de todos os tipos vêm sofrendo cortes por razões financeiras. Estou particularmente preocupado, por exemplo, com o Instituto de Neurociências de La Jolla, na Califórnia, presidido por Gerald Edelman, que ganhou um Prêmio Nobel por seus trabalhos em imunologia.
Ele é um gênio absoluto, autor de trabalhos importantíssimos, mas o instituto está fechado por problemas financeiros. É uma perda enorme. Talvez o dinheiro do Obama sirva para evitar isso.

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