CRÍTICA
Lições de Brasil na pintura acadêmica
A hegemonia acachapante lograda pelo movimento modernista reconfigurou a história intelectual do país. O barroco mineiro foi alçado à condição de época áurea da nascente cultura brasileira. O reverso desse rearranjo consistiu em depreciar as fontes visuais legadas por quase um século de prática artística consistente, cuja gênese remonta à missão francesa (1816), à criação da Academia Imperial de Belas Artes (1826) e às Exposições de Belas Artes (1840-89), iniciativas que teriam continuidade no regime republicano.
Esse ciclo prolongado de produção e circulação de obras plásticas obedeceu às convenções do neoclassicismo francês, firmando uma tradição de cultura figurativa com modelos autóctones de excelência, nutrida por gerações de artistas dependentes de encomendas oficiais e particulares. O mecenato exercido pelo poder imperial, pelas repartições públicas, pelas famílias de elite e pelos colecionadores fez as vezes de arremedo de mercado de arte.
Até anteontem, o esplêndido acervo artístico e documental desse experimento singular, quiçá único na América Latina (talvez com a exceção do México), fora de fato relegado ao quarto de despejo da memória nacional. O interesse crítico por parte de escassos intelectuais de prestígio --Alexandre Eulalio e Gilda de Mello e Souza, por exemplo-- atiçou a curiosidade sem estancar o embargo.
Nas últimas décadas, a pós-graduação em história da arte, a fornada de especialistas competentes e o êxito de exposições retrospectivas, em especial a Mostra do Redescobrimento (2000), suscitaram teses, monografias, catálogos, virando o jogo e contestando o estigma de inferioridade.
A doxa modernista também se traduziu no privilégio heurístico conferido à literatura em detrimento da cultura figurativa. O rechaço da arte acadêmica mutilou a visada da nossa formação cultural, ao esgarçar as mediações que esclarecem as condições sociais de gênese e transformação nas regras da arte. Tamanho descalabro tem muito a ver com a falta de uma história social e intelectual do império em favor de certa anedótica história política.
Por detrás desse embaço prosperou a vigência da cartilha de juízos discutíveis. Arte acadêmica virou sinônimo de cópia, de imitação servil de modelos estrangeiros, de importação amaneirada, atestado flagrante de sujeição cultural, de atraso formal, emblema de conservadorismo estético e de nacionalismo retrógrado. Em surdina, foi concedida a primazia às fontes literárias em detrimento das artes plásticas. O desmonte invocou critérios universalistas do ideário estético derivado das vanguardas do século 20, ótica anacrônica adotada por nossa inteligência.
CÂNON Não obstante, o revide de alguns estudiosos interessados em virar a partida adotou por vezes a postura de vezo antiquário, indefesos ao se contrapor à legitimidade desfrutada pelos ideólogos do cânon modernista.
O introito se justifica ao examinar dois livros indispensáveis sobre o assunto: de Félix Ferreira, "Belas Artes, Estudos e Apreciações" [org. Tadeu Chiarelli, Zouk, 308 págs., R$ 49]; e de Leticia Squeff, "Uma Galeria para o Império -- A Coleção Escola Brasileira e as Origens do Museu Nacional de Belas Artes" [Edusp/Fapesp, 200 págs., R$ 85].
O tema central de ambos é a Escola Brasileira, mostra paralela à Exposição Geral de Belas-Artes em 1879, em momento efervescente de crise do regime imperial. Embora a obra de Félix Ferreira (1841-98), publicada em 1885, comporte uma súmula da história da arte, passável, mas algo datada, os textos instigantes cobrem mostras e visitas a ateliês, a cobertura sagaz da Escola Brasileira e um estudo dos edifícios projetados pelo arquiteto Bethencourt da Silva.
No espelho de Gonzaga Duque, outro crítico de renome no período, autor do clássico "Arte Brasileira" (1888), Félix Ferreira era um polígrafo veterano. Atuou como editor e exerceu o ofício de letrado em variados gêneros e suportes, desde o romance até o teatro, em jornais e revistas, além de textos por encomenda.
A despeito da linguagem empolada, da empáfia, dos preconceitos esquisitos, possui talento invulgar para descrever pinturas, de paisagens sobretudo, seu gênero predileto --um frasista de primeira, com repiques de estranhamento, como que insuflando tração em câmera lenta aos ligamentos entre as figuras e os demais elementos da composição. O vulto desses escritos se explica em parte pela carência nestas paragens de repertórios biográficos congêneres aos do italiano Vasari (1511-74) ou do espanhol Palomino (1655-1726).
Após reconstruir o contexto da produção artística oficial na capital do império, Letícia Squeff esquadrinha a exposição geral de 1879 e as circunstâncias de formação da seleta Escola Brasileira, embrião do acervo do atual Museu Nacional de Belas-Artes, qualificando as credenciais institucionais e artísticas dos nomes escolhidos.
As 83 obras nesse espaço incluíam 51 trabalhos de ex-pensionistas do prêmio de viagem à Europa, obras de ex-diretores e de mestres da Academia, quadros laureados em concursos internos, encomendas do governo monárquico e algumas aquisições. Afora os 40 estudos representativos do modelo de aprendizagem aí prezado, a coleção reunia o que era considerado o suprassumo da produção acadêmica.
POLÍTICA Vale a pena frisar os critérios de política cultural desse panteão. O empenho em evidenciar os padrões de excelência alcançados pelo ensino acadêmico se aliava aos intentos de propaganda do regime monárquico e de seus dignitários.
As telas evocam momentos-chave da história da nação que se viabilizou sob tutela da monarquia portuguesa --a "Primeira Missa no Brasil" (Vítor Meireles, 1860) conforme o script da carta de Caminha, um incidente da luta contra os holandeses no Nordeste ("Magnanimidade de Vieira", José Correia de Lima, 1841), o proselitismo dos jesuítas contra a antropofagia praticada pelos indígenas ("Nóbrega e seus Companheiros", Manoel Joaquim de Melo Corte Real, 1843), a penetração dos paulistas' no território ("O Caçador e a Onça"; "Descoberta das Águas Termais de Piratininga", Felix-Émile Taunay, 1841), a "Passagem de Humaitá" (Vítor Meireles, 1872) na Guerra do Paraguai, contratada pelo ministro da Marinha Afonso Celso, futuro Visconde de Ouro Preto.
Episódios alusivos à colonização se misturam aos feitos da coroa, o pretérito e o presente enlaçados pela série de retratos da dinastia reinante. D. João 6º, d. Pedro 1º e d. Pedro 2º, benfeitores da Academia, são objeto de imagens áulicas, todos de pé, diante do trono, em roupagem de gala, ostentando as insígnias da dinastia dos Bragança, ladeados ao fundo por nesgas da paisagem tropical.
O rosto corado de d. João 6º, espremido entre o anjo, a figura feminina com o escudo dinástico e a virgem de branco com manto azul, esmagando a serpente, infundem à tela "Nossa Senhora da Conceição, Padroeira do Reino" (Manuel Dias de Oliveira, 1813) o lembrete do pacto entre o trono e o altar.
As paisagens se enquadram, pela tangente, no registro da pintura histórica: as de Taunay ("Vista da Mãe d'Água", 1841; "Vista de um Mato Virgem que se está Reduzindo a Carvão", 1843) incluem figuras diminutas de escravos ou evidenciam a destruição da mata para o comércio de madeira. E o mesmo se pode dizer das "Frutas do Brasil" (Agostinho José da Mota, 1860), quase uma quitanda de frutos da terra: mamão, melancia, cajus, pitangas e bananas.
O quadrinho "Vista da Fábrica do Conselheiro Capanema, junto à Estrada de Petrópolis" (35,2 x 52 cm., 1859), desse artista, é a única tela que remete ao universo de interesses e de sociabilidade da elite civil. No estudo, bem diverso das paisagens luxuriantes da baía carioca ou da floresta da Tijuca, o pequeno galpão da fábrica de papel pertencia ao barão Guilherme Schuch de Capanema, homem culto ligado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cunhado de Araújo Porto-Alegre e, ao que parece, o destinatário da encomenda.
Eis uma figura típica da elite enobrecida de proprietários e empresários, cujas demandas de decorações, de retratos, de cenas de gênero, aguardam ser rastreadas para propiciar inteligibilidade a nossa história social e intelectual. A reedição de "Belas Artes" traz como bônus a introdução de Tadeu Chiarelli; o livro de Leticia Squeff é fruto de pesquisa caprichada, de escrita fluente e enxuta, que apostou com acerto na interpretação balanceada entre as injunções artísticas inerentes à prática acadêmica e as razões políticas de feitio estrutural.
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