ESPECIAL PARA A FOLHA
No final de 2001 me vi diante de imenso desafio: montar o recém-filmado longa "O Prisioneiro da Grade de Ferro". À minha frente estavam mais de 170 horas de um material intenso e selvagem captado na Casa de Detenção de São Paulo por uma equipe mista composta de detentos e profissionais de cinema, sob minha coordenação.
Por conta da limitação de espaço no HD da ilha de edição (mal entrávamos no mundo dos gigabytes), foi necessário seguir uma lógica matemática extremamente rígida no início do trabalho: a cada fita contendo uma hora de material bruto eu deveria dispensar, já na primeira visão, 80% das imagens captadas. Do contrário, o equipamento não comportaria as dimensões do projeto.
Assim trabalhei até me deparar com a fita 36. O curso básico de linguagem audiovisual que fora oferecido por nós aos detentos já havia terminado e eles partiam da fase teórica para a prática, com o intuito de extrair do seu cotidiano uma resposta contundente à superficialidade com que a mídia os retratava.
Reprodução | ||
Cena da fita 36, captada pelo cineasta Aloysio Raulino para o documentário "O Prisioneiro da Grade de Ferro" |
Uma mudança também se operava em nossa equipe técnica. A fotografia do filme estava sendo assumida por Aloysio Raulino, cineasta de grande experiência, responsável por uma inflexão político-poética radical em nossa produção documental nos anos 60 e 70. Ele foi meu professor na ECA/USP, mas será que conseguiríamos trabalhar em sintonia, tal a diferença geracional que havia entre nós?
A resposta começaria a se esboçar desde a primeira fita que Aloysio registrou para o filme, a de número 36. Pedi a ele que filmasse, sem qualquer interferência, um prédio praticamente abandonado a que chamavam de hospital --o pavilhão 4. Após esse dia de trabalho solitário ele integrou-se à nossa equipe e enfrentamos juntos mais seis meses de filmagens, no qual aliás aprendemos muito mais do que ensinamos aos presos.
De volta à ilha de edição e à fita 36, um problema se impunha. Seu conteúdo era tão lindo e triste que eu não tinha como selecionar dez minutos e dispensar o restante. Decidi pular aquela fita, seguir limpando o material para voltar a ela mais à frente, quando o filme estivesse mais estruturado.
O tempo foi passando e a montagem, realizada em íntima parceria com Idê Lacreta, se estendeu por longos 17 meses. Por fim chegamos ao formato final de 123 minutos com o qual o filme foi finalizado.
Durante sua primeira exibição pública, súbito me caiu a ficha: e a fita 36? Aquela que havia se tornado praticamente mítica para mim, em que a crueldade transpirava beleza e poesia, havíamos esquecido de utilizá-la no filme... Então compreendi sua força e seu diferencial.
Muito mais que a revelação de uma intocada e crua realidade, o essencial ali era a visão particular, sensível e não distanciada dessa mesma realidade. E isto também estava registrado em todo o material que fizemos juntos dali em diante. Com seu talento, experiência e mais do que tudo, humanismo, Raulino contaminou a todos, transformando radicalmente o filme a partir de sua chegada. Irmanados, realizamos um filme em que não é possível diferenciar o material filmado pelos presos das imagens captadas por nossa equipe. Enfim, um filme feito com os detentos, e não sobre eles.
Tive muita sorte de encontrar dentro e fora da prisão parceiros que se revelaram inestimáveis para realizar um projeto que muitos julgavam impossível. Para além do filme, sedimentei nesse tempo algumas das minhas mais sólidas amizades. E ganhei um irmão mais velho, do qual nunca mais me afastei.
Aloysio se foi há poucos dias, abraçado à cidade que tanto amava. Mas não deixou indiferentes aqueles que privaram de sua amizade. Com seu particular e constante senso de humor, ensinou-nos a cada dia e de forma definitiva a afinar nosso olhar e não dissociar, em nenhuma hipótese, a emoção do intelecto e da ética.
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