domingo, 28 de abril de 2013

Cinema nacional é espelho cruel: filmes são a cara que temos

folha de são paulo
Revista Serafina

Crítico faz um passeio delirante pelas obras lembradas neste ensaio fotográfico
INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHA"Filme nacional eu não vejo. Só tem sexo", dizia a senhora à minha frente na fila.
Lamento informar, mas não é bem assim. Ele pode ser, como "Terra em Transe", um épico que parece não fazer sentido e seja sobre idas e vindas da política e dos políticos, dos caudilhos e idealistas de um país, Eldorado, que também parece não fazer muito sentido.
O que diria a senhora? Que é chato. Que política, como sexo, não é diversão, só atrapalha nossa vida.
Tentemos de novo: "São Paulo S.A." é um drama. Bem, começa com Walmor Chagas e Eva Wilma numa cena de amor. Mas é discreta. O que vem depois? O nascimento da indústria automobilística em São Paulo, o momento em que a cidade começa a se assumir como uma metrópole de verdade, com todas as suas contradições, eventualmente dolorosas.
Quem pode não querer ver isso? Metade do cine americano gira em torno dessas coisas. "Um filme cheio de graxa e autopeças, nada mais", proclamou um amigo, que se envergonha de qualquer imagem produzida entre nós. Mesmo de "Macunaíma"? Sobretudo dele.
"Uma traição a Mário de Andrade. Um 'Macunaíma' metido a tropicalista..." Ok, mas e Dina Sfat? "Ah", diria a senhora, "lá vem o sexo de novo..." Não bastava ser uma atriz sublime. Tinha que estar de metralhadora na mão e peito de fora: sexo e política de uma vez só.
Ok, vamos tentar outra. Essa não tem erro: "Pixote". "Ah, não", berra meu amigo. "Tudo menos criança abandonada." E, depois, diria a senhora, "tem até travesti". Nada feito.
Eu poderia argumentar que isso existe. Que até o Antonio Polo Galante, grande produtor da Boca, cresceu num abrigo, foi criança abandonada, chegou a dormir na rua antes de começar no cinema. Como varredor do estúdio...
Afinal, filmes só podem ser feitos a partir de coisas que existem: crianças abandonadas, criminosos, mulheres bonitas, safadezas em geral, sujeiras e grandezas políticas.
"Não. É preciso que haja lugar para o entretenimento. Entretenimento é a chave", diz o refratário. "O Beijo no Asfalto", então, nem pensar: é sem-vergonhice em cima de sem-vergonhice: Nelson Rodrigues com cinema nacional.
SONHO
Sônia Braga com Jorge Amado. Um sonho e um sonhador. Quem pode ser contra? Um pouco de escândalo, claro, mas 12 milhões de espectadores compensam qualquer coisa: "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Ao menos um marido já era, o gostoso, morreu, recebeu o castigo merecido. Ficou o bom homem, o farmacêutico sem graça.
E o "Beijo da Mulher Aranha"? Meu amigo refratário diria mais ou menos o seguinte: "Esse é bom, mas, francamente: o diretor é argentino, o roteiro é americano, o original é argentino, os atores são um americano, o outro porto-riquenho, o grosso da grana vem de Hollywood. O que é nosso mesmo? A cadeia e a Sônia Braga."
Só que tem uma coisa: Sônia Braga é Sônia Braga, mas cadê as grandes damas? Marília Pêra estava no "Pixote", prensada entre marginaizinhos e marginaizões.
Eis que ela está em "Central do Brasil". E ao lado bem de quem? Enfim, um respiro. Da Fernanda Montenegro. E dizem que o diretor é rapaz de boa família. "Mas tem menor abandonado! Eu vi pela cara dele", ela dirá.
Bem, daí em diante não tem jeito. "O que fazer?", pergunto. E de repente me aparece o espírito do crítico Jairo Ferreira (1945-2003), com seu jeito gozador: "Que cinema é esse? São uns gênios ou umas bestas? Estou me vendo no espelho". Um espelho cruel: nossas imagens são boas às vezes; às vezes, não. Mas, é triste dizer, são a cara que temos.

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