domingo, 21 de abril de 2013

ONDE A LEI NãO ALCANÇA » Salário ABAIXO DE R$ 100-Paulo Henrique Lobato e Carolina Mansur‏

Estimativas de especialistas são que 70% dos trabalhadores domésticos estejam sem carteira assinada. Negociadas como moeda, casa e comida reduzem salário 


Paulo Henrique Lobato e Carolina Mansur

Estado de Minas: 21/04/2013 


Às vésperas dos 70 anos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sancionada por Getúlio Vargas em 1º de maio de 1943, a Lei das Domésticas é o melhor exemplo de como as relações de emprego precisam de um amplo debate no Brasil. Promulgada pelo Congresso Nacional no início de abril, a nova lei ampliou os direitos dos profissionais que prestam serviços a famílias. São empregados do lar, babás, cuidadores de idosos, motoristas particulares e jardineiros, entre outros. 


Na prática, a emenda à Constituição necessita de outras regulamentações e já enfrenta caminhos tortuosos para alcançar a maioria dos domésticos. Talvez nem alcance vários deles. Especialistas estimam que a informalidade atinja 4,2 milhões desses trabalhadores – 70% da categoria. Boa parte mora nos rincões do país, onde o poder aquisitivo dos patrões é menor que nos grandes centros urbanos e a fiscalização trabalhista, por sua vez, é mais deficitária. Há ainda questões culturais: é comum encontrar serviçais que ignoram o direito do registro na carteira de trabalho em troca de um salário pouco maior e lugar para morar.


Janaína Pereira, de 26 anos, está entre essas trabalhadoras que aceitam qualquer oferta para ter uma vida melhor. Moradora do Bairro Alvorada, um dos mais pobres de Guanhães, no Vale do Rio Doce, ela exerce a profissão desde a adolescência. Em 2012, recebia R$ 200 mensais – pouco mais de 30% do salário mínimo da época (R$ 622,73). “Já trabalhei, inclusive, em feriados. Não tive escolha”, lamentou a jovem.


Filha mais nova de três irmãos, ela está de mudança para Belo Horizonte e enxerga no trabalho doméstico a salvação para uma rotina de humilhação. Janaína vem sem rumo certo ou emprego garantido. Na babagem, a única experiência que traz é a de doméstica. Com R$ 300 no bolso, ela pretende se manter até conseguir um emprego em casa de família. A carteira assinada e os benefícios, embora sejam importantes para a jovem, que sempre trabalhou informalmente, podem esperar. “Quero ir para o mundo e essa é a minha chance”, garante.


Disposta a fugir dos problemas familiares, como o consumo excessivo de álcool pela mãe e os maltratos da irmã, Janaína acredita que a experiência em Belo Horizonte será diferente. “Trabalhei na casa de uma senhora, lavava roupa à mão, ganhava R$ 150 por mês e nunca tive folga, nem mesmo nos feriados”, lembra. “Nunca tive carteira assinada na vida e, mesmo que eu continue sem, vou pegar o que achar em BH. Lá, vou poder recomeçar uma vida com mais oportunidades”, reforça. 


O caso de Janaína, no entanto, não é isolado. “É mais difícil combater a informalidade em regiões menores e nas zonas rurais. Nesses locais, a coisa deve continuar por ser uma questão cultural. Está enraizada nas pessoas. Compete ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) fiscalizar e autuar os infratores”, cobra Mário Avelino, presidente da organização não governamental (ONG) Instituto Doméstica Legal. Ele avalia que o alto percentual de informais só será reduzido a um patamar menor diante de mudanças na lei recém-criada. Sugere, por exemplo, a diminuição da alíquota do INSS devida pelo patrão, de 12% para 4%, como forma de desonerar a mão de obra doméstica.

AUMENTO RECORDE A nova lei, aliás, foi promulgada num momento em que a remuneração com os domésticos pesa no orçamento da classe média, a maior empregadora. Para ter ideia, o rendimento médio da categoria foi o que mais subiu em 10 anos na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Avançou 78,7%, de 2002 a 2012, segundo cálculo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Apenas a título de comparação, basta dizer que a média do salário de todas as categorias aumentou 17,7% em igual período.


“A valorização (do rendimento médio dos domésticos) é bem atrelada ao poder de ganho do salário mínimo”, explica Gabrielle Selani, coordenadora da pesquisa de emprego e desemprego do Dieese. Como resultado, muitas famílias demitiram ajudantes do lar antes mesmo de a proposta de emenda constitucional (PEC) ser promulgada pelo Congresso Nacional. Foi o que ocorreu com a babá A. M. N., de 25 anos, que pediu para não ser identificada. Ela cuida de uma criança em Montes Claros, no Norte de Minas, e cumpre aviso prévio. “Minha patroa foi leal comigo. Me explicou a situação e me garantiu o pagamento dos direitos trabalhistas na rescisão do contrato. Depois que cumprir o aviso prévio, vou batalhar nova vaga. Gosto de olhar crianças. Quem sabe consigo ser babá na casa de outra família?”


Avelino, o presidente do Doméstica Legal, teme novas demissões: “Se a lei continuar como está, daqui a um ano e meio, o trabalho doméstico será elitizado. E cerca de 800 mil empregadas serão demitidas”, diz.

ENCOLHIMENTO

O aumento do piso da categoria em percentual acima das demais profissões também pode ser justificado em razão da redução do número de domésticos no mercado de trabalho. Na Grande BH, por exemplo, o total desses profissionais caiu de 165 mil pessoas, em 2001, para 147 mil em 2011 – recuo de 11%, de acordo com o Dieese.

Estudo semelhante, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), confirma a redução do número de domésticos na região metropolitana. A participação deles entre os empregados ocupados na capital mineira e cidades vizinhas diminuiu de 8,1%, em fevereiro de 2010, para 7,5% no mesmo mês de 2011. Depois, para 7% em fevereiro de 2012 e, por fim, para 6,2% em 2013.





ONDE A LEI NãO ALCANÇA »
Salário ABAIXO DE R$ 100
 Enquanto a Lei das Domésticas garante mais direitos, realidade no interior ainda obriga meninas a aceitar todo tipo de abuso para driblar a miséria e o isolamento


A Lei das Domésticas, promulgada pelo Congresso Nacional no início de abril, promete transformar a relação trabalhista entre empregadas e patrões. Na teoria, a expectativa é de que mudanças como a jornada máxima de oito horas diárias melhorem a vida de 6,6 milhões de trabalhadores domésticos no país. Na prática, no entanto, muitos continuam fora do alcance da lei, esquecidos em um universo à parte, onde não há emprego disponível devido baixa qualificação e onde o serviço informal – muitas vezes em condições desumanas e com salário abaixo do mínimo – surge como única opção. Na zona rural e em pequenas cidades, um mês inteiro de trabalho chega a valer R$ 50 e a mudança para a capital e cidades polo acaba significando a libertação de uma vida pobre e pouco promissora.

O dia a dia dessas trabalhadoras, suas histórias, o sonho com uma vida melhor e o caminho para cidades onde há promessa de mais oportunidades são os temas da série Aonde a lei não chega, que o Estado de Minas publica a partir de hoje. São histórias como a de Elisângela Batista de Carvalho, de 23 anos, que deixou o pouco que tinha para trás e busca uma vida diferente longe da família. Moradora de um povoado conhecido como Borrachudo, na zona rural de Paulistas, Região do Rio Doce, ela começou no serviço doméstico aos 11 anos de idade. “No meu primeiro emprego, ganhava R$ 5 por dia de trabalho”, lembra. Na região em que morava, Elisângela sempre cuidou da limpeza da casa de vizinhos, de fazendas da região, mas nunca ganhou mais que R$ 200 por mês.


A vida pobre ao lado dos 11 irmãos fez com que ela se apegasse ainda mais ao emprego. “Trabalhar ganhando pouco era a única forma de ter o que comer, de conseguir uma vida um pouco melhor.” Com as economias acumuladas em 12 anos de trabalho remunerado abaixo do mínino no interior, Elisângela comprou um terreno e construiu casa própria na roça. Mas, diante de problemas no relacionamento e da separação do marido, ela decidiu deixar quatro irmãos, a mãe, Divina Geralda Batista, e a propriedade para trás e tentar a sorte na capital.


Na chegada a Belo Horizonte, se assustou com tanta novidade. Inclusive, no trabalho, onde é tratada com respeito, recebe um salário mínimo e tem a carteira assinada. “Vim com emprego arranjado pela minha tia na casa de uma senhora”, conta. “A patroa me trata bem. Respeita meus horários. É diferente do interior, onde as pessoas fingiam que nem estávamos ali as servindo”, ressalta. Em Paulistas, ficou a mãe, que todos os dias lamenta a falta da filha. “A gente quer que eles fiquem por perto, mas o que a gente pode dar é muito pouco”, comenta.


Agora na capital, a vida de Elisângela começa a mudar. Com o primeiro salário, comprou celular, roupas e cosméticos. Também mandou dinheiro para a mãe, que vive com R$ 250 por mês, além de guardar um pouco para comprar outra casa em BH. “Peço a Deus que me dê forças para continuar aqui porque é muito ruim estar longe da família. É o que mais me faz falta”, diz. 


O descaso com que é tratado o trabalho doméstico em pequenas cidades do interior faz com que as histórias se repitam. Maria Geralda da Silva Santos, de 31, que se apresenta para todos como Neguinha, também precisou mudar o rumo de sua vida. Nascida em Marilac, também no Rio Doce, saiu de casa pela primeira vez aos 14 anos, quando aceitou o convite para trabalhar em Ipatinga e morar na casa dos patrões, recebendo R$ 80 por mês. “Meu pai batia muito em mim e o único trabalho era na enxada. Não tive infância, não aproveitei a minha mãe. Precisei aceitar o emprego. Hoje, tudo que eu tenho é por causa do meu serviço como doméstica”, ressalta.


Com R$ 900 por mês – um salário mínimo, mais o dinheiro que consegue com as faxinas que faz aos fins de semana –, Maria hoje paga aluguel e está mobiliando a casa com a ajuda de amigos. No mês que vem, Maria também terá a sua carteira assinada pela patroa, que prometeu cumprir a lei. Para o futuro, pretende dar boa educação à filha, que sonha ser veterinária. “Vou lutar para isso, nem que tenha que derramar sangue. Quero que ela seja alguém na vida”, garante. Com os olhos no futuro, ela garante não sentir saudades do que ficou, de sua história e família. Do passado, Neguinha leva na memória apenas o carinho da mãe, que faleceu há três anos.

SONHO QUEBRADO A história de Juciele Gonçalves Silva, de 23 anos, que nasceu na zona rural de Brasília de Minas, na Região Norte do estado, também ilustra bem a condição das empregadas domésticas que saem do interior. Ter acesso à escola não foi fácil. Com muito esforço, conseguiu concluir o ensino médio. Mas o único serviço que encontrou foi de empregada doméstica numa casa do mesmo município. Quando Juciele estava com 20 anos, surgiu a oportunidade de trabalhar em Montes Claros. “Vim pensando em estudar, com o sonho de fazer faculdade de psicologia”, relata.


Ela começou o trabalho de empregada doméstica recebendo valor inferior ao salário mínimo, sem carteira assinada, mas com a promessa de que teria tempo para fazer um curso noturno. Na prática, nada disso aconteceu. “Eu trabalhava até a noite, não tinha descanso e quase não saía de casa. Minha patroa falava que era muito perigoso sair.” No ano passado, Juciele mudou de emprego. Com a atual patroa, ganhou tempo de descanso e diz ser bem tratada. No entanto, recebe R$ 450 por mês e não tem a carteira assinada. “A minha patroa me explicou que não tem condições e aceitei numa boa porque minha relação com ela é de amiga”, afirma.


Sem benefícios e agora grávida, Juciele deixará o serviço de doméstica. Vai deixar também os planos de voltar a estudar para depois. Em maio, ela volta para Brasília de Minas, até o nascimento do filho. “Pretendo retornar para Montes Claros no fim do ano, como empregada doméstica ou em qualquer outro serviço”, disse a jovem, que sonha um dia ter a carteira assinada, mas que agora vai levar consigo o bebê. Na zona rural, a mãe, Almerinda, lamenta a falta da filha. “Tem dias que choro de saudade. Fico pensando se está com saúde, se está bem alimentada, mas sempre incentivei que ela trabalhasse fora para poder correr atrás das suas necessidades”, diz.


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