domingo, 21 de abril de 2013

Minha História Peter Ho Peng,64

folha de são paulo

A ditadura quis me apagar
Naturalizado brasileiro, homem que lutou contra regime militar conta como recuperou sua identidade, cassada há 40 anos
FELIPE BÄCHTOLDDE PORTO ALEGREA ditadura tentou apagar minha cidadania brasileira. E conseguiu, por muitos e muitos anos.
Eu tinha 1 ano e 11 meses quando vim para o Brasil. A naturalização foi automática, era filho de pais naturalizados. Minha família sempre foi de Porto Alegre, uma das primeiras da colônia chinesa.
Estudei engenharia química na Federal do Rio Grande do Sul e era ativista, fazia oposição [ao regime militar]. Da nossa direção do diretório acadêmico, quatro foram expulsos da universidade. O clima não era de falta de liberdade, mas de medo. Nas salas de aula havia espiões.
Pais recomendavam que os alunos não entrassem no diretório. Mas nós mobilizávamos shows, reuniões dançantes, sessões de cinema. Enchíamos o centro acadêmico.
Havia gente que pregava confronto mais direto com a ditadura. Isso não prevaleceu. O nosso trabalho sempre foi defender liberdades democráticas.
Em 1971, fui sequestrado no Rio de Janeiro. Fui preso, torturado por mais de 60 dias no DOI-Codi e outros 60 dias no Dops do Rio.
Fui transferido para Porto Alegre e permaneci detido sem ter uma acusação. Nunca fui julgado ou condenado. Consegui sair. Depois, em 1973, fui novamente sequestrado, junto com outros estudantes de engenharia.
Desapareceram então com meus documentos. Na libertação, me deram uma carteira modelo 19 [documento dos estrangeiros à época].
Correspondências entre órgãos da repressão me caracterizavam como "chinês" e "apátrida". Havia a intenção de me expulsar do país. Estava sob vigilância constante.
Resolvi me antecipar e sair do Brasil. Eu não tinha para onde ir. Poderia voltar para Hong Kong, mas minha cultura não é a chinesa.
EXÍLIO
Fui morar nos Estados Unidos. Meu visto de saída do país dizia: "Não dá direito de retorno ao Brasil".
Foram mais de dez anos longe do Brasil. Quando houve a Lei da Anistia, em 1979, eu fiquei fora, porque era para brasileiros voltarem ao país. E eu não conseguia provar que era brasileiro.
Com a abertura [do regime militar], nos anos 80, passei a visitar o Brasil a trabalho três ou quatro vezes por ano.
Só voltei a ter residência no país em 2004. Era bastante trabalhoso para mim: a cada 90 dias, tinha que sair do Brasil para entrar de novo.
Comecei a reivindicar cidadania por essa época, mas não descobria o caminho. Procurei meus documentos e eles tinham sido apagados: carteira de trabalho, de motorista, RG, tudo.
Fiz contato com o [ativista] Jair Krischke e iniciamos um processo na Comissão da Anistia [do governo federal].
Levou um tempo. Como devolver uma cidadania que tinha sido apagada? Pesquisas em Porto Alegre apontavam que eu tive um RG, mas a pasta [do arquivo] estava vazia.
Em abril do ano passado foi deliberado na comissão que eu deveria usufruir de todos os direitos de um brasileiro.
Devido à dificuldade legal, demorou até agora, quase um ano, para eu poder retirar o RG. Exemplo de como é difícil reconstruir a democracia. Foi uma longa trajetória, mas é uma vitória.
Aos 64 anos, vou fazer um título eleitoral pela primeira vez. Vou votar com gosto.

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