JUAN VILLORO
tradução PAULO WERNECK
tradução PAULO WERNECK
RESUMO Nascido no ambiente futebolístico de Rosario, o mais propício à proverbial fabulação argentina, Lionel Messi enfrentou uma sucessão de portas fechadas até se consagrar como um mito do futebol aos 25 anos. Artilheiro do Barça da era Guardiola, ainda lhe falta fazer pela seleção argentina o que fizeram Maradona e Pelé por seus escretes.
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Pouco antes de disputar sua primeira final nas categorias infantis, Lionel Messi viu-se trancado num banheiro. O menino que nenhum zagueiro conseguia deter enfrentava um trinco emperrado. Faltava pouco para que a partida começasse e Leo espancava a porta sem que ninguém o ouvisse. O troféu daquele campeonato era o maior do mundo: uma bicicleta.
Uns teriam cedido às lágrimas e à resignação, outros teriam agradecido por não ter que demonstrar nada em campo. Leo quebrou o vidro da janela e pulou para fora. Chegou ao campo com a segurança de que nada o detém. Anotou três gols na final. O gênio teve a sua bicicleta.
O destino de Messi aconteceu pelo menos duas vezes. Filho de Célia e Jorge, nasceu em Rosario, província argentina de Santa Fé, no dia de são João de 1987, mas antes já tinha sido prefigurado nas tertúlias do café El Cairo, mais precisamente na "mesa dos galãs", presidida pelo maravilhoso desenhista e escritor Roberto Fontanarrosa.
A Argentina é uma fábrica de talentos futebolísticos que são previamente imaginados pelos torcedores mais verbalizados e fabuladores do planeta.
Depois de saber, por Macedonio Fernández, que viver é distrair-se da morte, Fontanarrosa escreveu o conto "O céu dos argentinos", no qual uns amigos fazem um churrasco e falam de futebol. Logo percebem que estão mortos. Isso os deixa muito felizes: se já morreram e estão comendo carne enquanto assistem a uma partida, então eles tinham ido parar no paraíso.
Reprodução | ||
Ilustração de Rafael Campos Rocha para a edição de 21 de abril da "Ilustríssima" |
Rosário é a cidade de César Luís Menotti e Marcelo Bielsa, contundentes retóricos do banco de reservas. Não há, em nenhum outro lugar, duas torcidas que se enfrentem com um rancor tão leal. Não por acaso, aceitam com orgulho apelidos injuriosos: os "Canallas" do Rosario Central encaram os "Leprosos" dos Newell's Old Boys. Certa vez, comentei com um taxista de Buenos Aires que ia assistir a um Boca-River. "Isso não é nada", contestou, presunçoso: "nós nos odiamos mais". Obviamente, ele era de Rosario.
Se o espírito de Pamplona se expressa nas festas de San Fermín e o do Rio no Carnaval, o de Rosario se reconhece por um rito único: "A pomba de Poy". Em 19 de dezembro de 1971, Aldo Pedro Poy, atacante do Rosario Central, lançou-se no ar para cabecear e vencer o goleiro do Newell's Old Boys. Aquele momento de glória se repete a cada 19 de dezembro: "Meu problema não é me espichar, mas me levantar", diz, com humor, o veterano Poy.
Na cidade de Che Guevara, de Fito Paez e de outros inconformados, Lionel Messi começou a deslumbrar com a bola aos cinco anos. Sua habilidade era única, mas cumpria um sonho coletivo.
Leo debutou no time do bairro, o Grandoli. Seu primeiro técnico foi Salvador Aparicio. Aos 60 anos, Aparicio já tinha visto todos os tipos de "pibes", garotos, chutar em sua várzea. Não esperava muito daquele garoto diminuto. Quando viu o que ele estava fazendo, só lhe ocorreu um conselho técnico: "toca a bola". Messi atravessava o campo inteiro sem largá-la.
Mais que um goleador, "La Pulga" era um "enganche" (um meia-atacante camisa 10 nato), quer dizer, um vendaval que limpava o campo de adversários para que outro se encarregasse da tarefa, historicamente vulgar na Argentina, de fazer o gol. Os vídeos da época o registram como uma versão bonsai do Messi atual: o mesmo dom para o drible e a mudança de ritmo, a mesma alegria celebratória. "Infância é destino", escreveu o psicanalista mexicano Santiago Ramírez.
Aos oito anos, seus colegas da escola o puseram bem no meio da foto oficial da classe. Seu carisma se devia à sua ginga com a bola, mas também à picardia do olhar. Nem sempre fazia travessuras, mas tinha a graça de quem as imaginava.
Quando jogava baralho, era preciso ficar atento às suas manobras: a qualquer momento, roubava. Se perdia, esparramava as cartas e se negava a continuar jogando.
PROVAÇÕES
Sua mãe o descreve como um "consentido". Nada parece desmentir a hipótese de que as pessoas o amavam. Mesmo assim, o destino lhe reservava algumas provações.
Na vida de Messi tudo sempre foi questão de escala. Tinha oito anos quando seus pais se preocuparam com sua baixa estatura. Levaram-no ao médico e souberam que lhe faltava um hormônio que permite o crescimento. Havia remédio, mas custava US$ 1.500 mensais, valor que a família não tinha condições de pagar. Receberam apoio de duas empresas de Rosario. Uma vez por dia, Leo se injetava na perna com uma presença de ânimo insólita em alguém de oito anos. Desde então, sua destreza só seria superada por sua vontade.
Ao fim de dois anos o dinheiro para as injeções não pôde continuar fluindo. O Newell's Old Boys se negou a bancar o gasto e Messi foi a Buenos Aires para um teste no River Plate. Era o menor dos aspirantes e foi o último a entrar em campo. Só faltavam dois minutos de jogo, mas Leo se fez notar.
"Quem é o pai?", perguntou o responsável pelo teste. Jorge Messi saiu de trás de um alambrado. "Ele fica", disse o técnico. A contratação não chegou a acontecer. O time da faixa vermelha não quis negociar a transferência com o Newell's nem aceitou pagar o tratamento médico para um craque indiscutível, mas de futuro incerto.
Messi preferia ficar em Rosario, junto aos lentos barcos que avançam pelo rio Paraná, perto dos seus, celebrando o dia do Amigo "Leproso". Os laços sentimentais fazem bem ao boleiro. Não há nada mais estimulante --nem mais raro-- que um jogador que pode ser torcedor de seu time. Juan Román Riquelme é um sedentário extremo do futebol. Sente-se cômodo no vibrante estádio do Boca Juniors e fica desnorteado e cego se veste uma camisa estranha. Messi também desejava ficar em casa, mas a sorte o converteu na figura oposta a Riquelme: um nômade extremo.
Barcelona Em 2000, cruzou o oceano para fazer um teste no time blaugrana. O Barça é mais do que um clube. Mas isso queria dizer que ele adotaria um grande de Rosario que, curiosamente, era um garoto? Os primeiros dias na Catalunha foram complicados. O treinador Carles Rexach estava em Sidney. Leo e seu pai o esperaram durante duas semanas num hotel com vista para a Plaza de España.
Memorizaram a paisagem e viram com inveja o ônibus azul que ia para o aeroporto. Não queriam estar lá. Estavam quase fazendo as malas quando souberam que o treinador voltaria no dia seguinte. Dizem que quando o empolgado Rexach treinou no Japão, nunca sabia qual dos dois times era o dele. No dia de seu encontro com Messi, chegou tarde ao campo, com seu costumeiro ar distraído. Mesmo assim, não custou a reconhecer o argentino no gramado, pois ele era o mais baixo de todos.
"Passou 15 dias em Barcelona, mas sobraram 14!", acrescentou Rexach, com seu gosto por inesquecíveis frases extravagantes.
Para tranquilizar a família, o técnico assinou o "contrato" mais fino do futebol. Em 14 de dezembro de 2000, pegou um guardanapo de papel em um bar e escreveu um parágrafo no qual se comprometia a cuidar do menino. O documento tinha o mesmo valor legal de uma súplica em Montserrat, mas hoje em dia está sob custódia de Josep Maria Minguella, o gestor da contratação, como uma valiosíssima peça de arte popular.
Em 1º de março de 2001, assinou-se um contrato de verdade e a família Messi se mudou para Barcelona, para dar apoio a La Pulga.
Um dos maiores desafios de um jogador de futebol é a administração da solidão. Precisa matar um tédio eterno em quartos de hotel. Isso se agrava quando o jogador é um garoto afastado de seu entorno. Sem os passatempos nem os raviólis familiares, Leo descobriu que morar em Barcelona era tão chato quanto chupar um prego.
Seus irmãos também se deprimiram. A mãe decidiu voltar com eles para a Argentina. Leo ficou com o pai na cidade onde então envelhecia outro estrangeiro: o gorila branco Copito de Nieve. Em Messi sobram habilidades, mas a história do futebol está cheia de talentos que ficaram pelo meio do caminho. Valia a pena permanecer em Barcelona, longe da família, sem recompensa certa à vista?
Uma tarde, o pai de Messi não aguentou mais e propôs que voltassem. Outra porta parecia se fechar na carreira do jogador. Mas, aos 13 anos, Leo já era um especialista em adversidades. O menino que escapou pela janela para ganhar seu primeiro título pediu a seu pai que ficassem. Em Rosario estava o mundo, mas em Barcelona estava La Masía, a escola de futebol onde se formaram Xavi, Iniesta e Guardiola.
TREINADOR
Rexach teve a generosidade de contratar um jogador que não seria seu: ele não duraria tempo suficiente como treinador para ver a estreia de Messi.
A honra coube a Frank Rijkaard, que soube levá-lo com bom ritmo e apoiá-lo paternalmente durante sua primeira lesão grave. Depois contaria com Josep Guardiola, o técnico que interpreta melhor do que ninguém o valor da infância no futebol. Não por acaso, foi gandula no Camp Nou. Ao começar a temporada 2009-10, percebeu que seu plantel estava restrito e comentou: "Jogaremos com as crianças", numa alusão a Pedro e Busquets. Com Guardiola no banco, o lugar de Messi estava assegurado.
A chegada de Leo à maioridade coincidiu com seu amadurecimento futebolístico. Em 2005, fez 18 anos, foi escolhido o melhor jogador do Mundial Sub-20 e anotou seu primeiro gol pelo FC Barcelona. Em 2007, confirmou sua hierarquia no Santiago Barnabeu: em 10 de março foi responsável por um "hat-trick" --quando o jogador faz três gols numa mesma partida-- diante da equipe merengue, o Real Madrid.
Os números que Messi já ostentou nas costas traçam a biografia de um ídolo. Debutou no Barça com o 30, avançou até o 19 dos novatos que respondem e logo chegou ao upgrade definitivo: o 10 que Pelé e Maradona converteram em sagrado e, sobretudo, o que ele usava, ainda criança, no uniforme rubro-negro do Newell's.
As chuvas de gols e os seis títulos conquistados com o Barça na temporada 2008-09 concederam-lhe o troféu Bola de Ouro. Ao pegar a taça, sorriu feito uma criança numa sorveteria. Isso não saciou seu apetite: na Liga dos Campeões 2009-2010, igualou a estrepitosa marca de 47 gols de Ronaldo.
Viriam outros recordes, quase inverossímeis. Em 2012, tornou-se uma dor de cabeça para o time da cidade que fabrica a aspirina: marcou cinco gols no Bayern Leverkusen, novo recorde na Champions. Naquele mesmo ano, alterou um recorde que estava de pé por 40 anos. Em 1972, Gerd Müller tinha anotado 85 gols no mesmo ano. Messi levou a cifra a 91 e enviou uma camisa autografada para o artilheiro alemão.
Os prêmios se tornaram, para ele, uma rotina de trabalho. Nada foi tão lógico quanto a quarta Bola de Ouro que recebeu, superando Michel Platini, Johan Cruyff e Marco van Basten, que receberam três.
A saída de Pep Guardiola do Barcelona em meados de 2012 foi um golpe duro para Messi. O técnico que lhe deu todas as facilidades para explorar seu talento e prescindiu de um centroavante para que o argentino pudesse ser dois jogadores ao mesmo tempo (o que prepara as jogadas como meia e o que as finaliza como um camisa 9) concedeu-se um sabático depois de quatro temporadas de extenuantes sucessos, nas quais, com a ajuda de Messi, conquistou 14 de 19 títulos possíveis.
Leo não assistiu à coletiva em que Pep se despediu porque não queria chorar em público. Mas seu rendimento não só não caiu com a saída do professor, mas aumentou no Barça de Tito Vilanova, homem da casa, ex-assistente de Guardiola e continuador de seu projeto.
A grande conquista que falta a Leo é com a seleção argentina. Se ainda se duvida que ele seja melhor que Maradona ou Pelé, é porque não conquistou títulos com a Selección Mayor, como os argentinos chamam o seu escrete. Na Copa do Mundo na África do Sul, em 2010, ele jogou bem, mas não esteve à altura de seu gênio no bagunçado time que Maradona olhava da beira do campo, crente de que seu carisma superaria sua falta de ideias.
A Copa do Mundo no Brasil vai ser uma prova definitiva para Messi, a oportunidade de demonstrar que também pode triunfar em seu país. O peso sentimental e mitológico dessa exigência é nítido. Lembramos de Pelé e Maradona pelo que fizeram por suas seleções.
Aos 25 anos, Messi é o jogador mais apreciado do planeta. Em cada partida demonstra que o futebol é um esporte maluco, que não depende do físico. Seu 1,69 metro de estatura não o impediu de marcar um gol de cabeça na final da Champions de 2009, diante do imenso goleiro Van der Saar.
Sua marca pessoal consiste em brecar a seco e iniciar uma súbita corrida para deixar os adversários perdidos e, de fora da área, chutar no ângulo. O que não o impede de também inventar gols de artifício: na temporada 2008-09, conseguiu o sexto título consecutivo do Barça conduzindo a bola com o coração.
No último dia 10, Lionel Messi voltou a revolucionar o futebol. Estava machucado e não podia enfrentar o Paris Saint-Germain, mas a equipe adversária ganhava de 1 a 0 e ao treinador não restou outro remédio senão escalar Messi.
Entrou aos 16 minutos do segundo tempo, e a partir de então o PSG foi abaixo e o Barcelona ressurgiu. Houve uma transformação emocional em todo o campo. O impacto de Messi não foi futebolístico, mas espiritual. Mal conseguia se mexer, mas bastou sua presença para alterar o jogo. Deu um passe decisivo e o Braça empatou. Foi o suficiente para passar para a rodada seguinte.
Pela primeira vez, Messi não jogou de corpo, mas de alma. De certa forma contemplamos sua posteridade: quando ele se aposentar, sua lembrança ajudará a continuar a ganhar jogos. Como dizia Nelson Rodrigues: "Até os fantasmas têm obrigações com seu clube".
Messi atravessa um estado de graça que não se via desde Maradona, de quem ele já copiou o célebre gol de 1986, quando Diego Maradona driblou metade da seleção inglesa. O xerox feito por Messi aconteceu em 18 de abril de 2007, contra o Getafe. Essa obra-prima produziu uma outra, do jornalismo, assinada por Juan Sasturian: "Lionel Messi, Autor do Quixote". Assim como Pierre Menard, o personagem de Borges, La Pulga fez da cópia uma arte.
Escreve Sasturain:
"Nesses tempos de futebol mecanizado e jogadas preconcebidas com executores obedientes, não é tão raro que se vejam gols iguais a outros --há uma infinidade de casos em que se repetem, copiados, circunstâncias e desempenhos--; o extraordinário do caso é que, precisamente, o que se via magicamente repetido era o --por definição-- irrepetível, o excepcional: o melhor gol da história. O de Messi não era nem melhor nem pior: era, de um modo inquietante, igual. Não fez outro gol, parecido, nem o copiou, nem o imitou, nem o traduziu: simples e inacreditavelmente o fez outra vez."
Não sabemos aonde chegará Lionel Messi. Só sabemos que não há zagueiros nem trincos de portas que sejam capazes de detê-lo.
Quando uma criança quer uma bicicleta, é capaz de muitas coisas. Quando um homem joga feito o menino que quer uma bicicleta, é o melhor jogador de futebol do mundo.
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