TEATRO
Thomas Lodge, um elisabetano em Santos
RESUMO
Figura-chave do círculo de intelectuais em que Shakespeare floresceu no século 16, o dramaturgo Thomas Lodge teve uma curiosa passagem por Santos, onde roubouum livro na biblioteca dos jesuítas. Vida e obra são examinadas em estudos que mostram inesperado e precoce intercâmbio entre Brasil e Inglaterra.
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"Vale, mi fili, Deus te salvum reducat in domum tuam."Adeus, meu filho, que Deus te reconduza salvo à tua casa. Foi o que o londrino Thomas Lodge ouviu de um dos amigos que fez em Santos, José Adorno, ao deixar a cidade em 1592. Em carta que escreveu na década seguinte, em Londres, ele recorda com carinho a maneira como foi tratado pelo rico senhor de engenho nos dois meses que passou no Brasil.
Poeta, romancista e dramaturgo de grande influência sobre Shakespeare, que era seis anos mais jovem do que ele, Lodge foi um dos "university wits" (sagazes universitários) que tomaram o palco elisabetano no século 16.
"Em algum momento do fim da década de 1580, Shakespeare entrou num salão --mais provavelmente numa estalagem de Shoreditch, Southwark, ou no Bankside-- e deparou-se com muitos dos principais escritores comendo e bebendo juntos: Christopher Marlowe, Thomas Watson, Thomas Lodge [...]." Assim Stephen Greenblatt, de Harvard, descreve o cotidiano dos autores teatrais ingleses em "Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" (Companhia das Letras).
Em agosto de 1591, Lodge sumiu das estalagens de Londres para reaparecer em dezembro, lendo e furtando livros, na biblioteca do Colégio de Jesus, em Santos. Um desses livros, o manuscrito "Doutrina Cristaa na linguoa Brasilica", foi doado depois por ele à biblioteca Bodleian, a principal de Oxford, onde havia estudado, e está agora sendo preparado para a sua primeira edição, ainda sem previsão de lançamento. Quem está à frente do projeto é Vivien Kogut Lessa de Sá, da Universidade de Essex, também na Inglaterra, que retoma parceria com Sheila Moura Hue, da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
"Não sabemos por que Lodge teria levado o manuscrito, mas uma possível explicação seria o exotismo que esses objetos carregavam", diz Sá, lembrando que Montaigne, por exemplo, colecionava objetos tupinambás na França. Sá e Hue lançaram há cinco anos "As Incríveis Aventuras e Estranhos Infortúnios de Anthony Knivet" (Zahar), escrito por um companheiro de viagem de Lodge que viveu dez anos no Brasil.
Lodge e Knivet vieram na frota de cinco navios comandada por Thomas Cavendish, o terceiro europeu a circum-navegar o mundo --façanha que buscava repetir, além de saquear espanhóis pelo caminho, na nova expedição.
(José Adorno não foi o único amigo que Thomas Lodge fez no Brasil. Também teriam se aproximado do escritor dois mercadores ingleses, John King, que viveu quase duas décadas em Santos, e John Whitehall, genro de Adorno.
Whitehall conseguira estabelecer uma rota regular de comércio de açúcar entre Santos e Londres, em pleno século 16. Apelidado aqui de João Leitão, ele mostra que a relação com a Inglaterra era maior do que se imagina, segundo Sheila Moura Hue, que prepara antologia de relatos ingleses sobre o Brasil da época, para a editora Zahar, com Vivien Kogut Lessa de Sá.
"Ele escreve uma carta para a Inglaterra, dizendo ter se casado com a filha de um homem muito rico e que, se trouxessem mercadorias, os ganhos serão de três para um", diz Hue, professora-adjunta de letras da Uni-Rio. Envia até uma lista com os produtos. "É curiosíssima, você vê do que se precisava no Brasil, dúzias de fitas de veludo pretas, tecidos caríssimos, mantas, papel, cordas para violão.")
A lembrança afetuosa de Adorno e o catecismo bilíngue, tupi-português, não foram as únicas relíquias que Lodge levou. Em versos que publicou depois, ele remete às agruras no mar --e nas mãos do comandante. No ciclo de sonetos "Phillis" (1595), fala da "viagem desolada e infernal" e da sobrevivência "em meio a este mundo de água" e à "luta contra o mar".
ROMANCE
Os horrores da expedição, que levaram o próprio Cavendish à morte, também ecoam num romance que Lodge publicou em 1596, considerado sua grande criação, "A Margarite of America" (Barnabe Riche Society, 2005). No prefácio, ele diz ter se baseado numa "história em língua espanhola" que encontrou "por acaso na biblioteca dos jesuítas em Santos". E que reescreveu no navio, em meio à fome e à violência dos próprios colegas de viagem.
Biógrafos de Lodge e especialistas em literatura elisabetana se dividem sobre a inspiração para "Margarite": alguns apontando outras fontes e lembram que a tal história em espanhol jamais foi encontrada. Outros, porém, sem negar que houve fontes diversas para a obra, veem nela reflexos do que Lodge presenciou na costa da América do Sul sob o cruel Cavendish, inclusive na sanguinária tomada de Santos, em pleno Natal.
Por exemplo, Philip Edwards, na coletânea de relatos "Last Voyages" (Oxford University Press, 1989), especula se "a brutalidade e o sofrimento na viagem foram em parte responsáveis pela horrível violência" retratada depois no romance. Outros estudos, também recentes, falam de "Margarite" como "uma visão distópica do Novo Mundo" e até como um questionamento à estratégia e à retórica imperialistas que Elizabeth 1ª começava a esboçar na Inglaterra.
No enredo, Arsachadus, príncipe de Cusco, se casa com Margarita, princesa de Mosco, para evitar uma guerra entre os dois reinos. Mas o início pastoral da obra logo degenera, ao gosto da época, em atrocidades do príncipe.
Embora em prosa, guarda relação com as tragédias de vingança "Titus Andronicus", de Shakespeare, e "A Spanish Tragedy", de Thomas Kyd, que são anteriores e também carregadas de mutilações e horrores variados. Também se aproxima de "Hamlet" (1600), que é do mesmo gênero. Tanto o romance como a peça trazem cenas de aconselhamento paterno no início e terminam com corpos aos montes, inclusive o do príncipe.
Mas, no caso, são apenas textos paralelos. A forte influência de Lodge sobre Shakespeare foi por outras obras, como o romance "Rosalynde" (1590), reescrito na comédia pastoral "Como Você Quiser" (1599). Também o poema "Historie of Glaucus and Scilla", publicado em 1589 e que inspirou, principalmente na forma, o poema shakespeariano "Vênus e Adônis" (1593). "Eles circulavam nos mesmos meios, eram ambos dramaturgos e poetas", diz Sá. "Pode ser que houvesse uma certa competição saudável. Não sabemos nada específico, a não ser que Shakespeare era leitor de Lodge."
HAMLET
Curiosamente, Lodge cita na sátira "Wit's Misery", que publicou em 1596, a primeira peça "Hamlet". Chamado hoje de "Ur-Hamlet", o texto se perdeu, mas é creditado a Shakespeare por estudiosos como Harold Bloom. Em passagem célebre, o sagaz universitário Lodge ironiza "o fantasma que gritava tão miseravelmente no teatro, como uma vendedora de ostras, Hamlet, vingança!'".
De sua parte, segundo Greenblatt, Shakespeare satiriza "Wit's Misery" na cômica sensualidade de Falstaff em "As Alegres Comadres de Windsor", que teria sido escrita em 1597.
Shakespeare e Lodge foram ligados a companhias teatrais rivais, respectivamente Lord Chamberlain's Men, considerada a mais importante, e The Admiral's Men, a segunda. E ambos estão em uma célebre lista de dramaturgos londrinos feita em 1598 por Francis Meres: Shakespeare, "o melhor em comédia e tragédia", e Lodge, um dos "melhores para comédia".
Mas sobreviveram apenas duas peças de Lodge, "The Wounds of Civil War" e "A Looking Glass for London and England", publicadas em 1594. Ele já havia desistido do teatro e logo abandonaria toda ambição literária. Segundo Alice Walker, autora de "Life of Thomas Lodge", de 1933 (editado em 1974), a grande mudança em sua vida no final dos anos 1590, a conversão ao catolicismo em plena Inglaterra reformista, teria sido acelerada pelas leituras em Santos.
De volta a Londres, ele passou a ter como referência o dominicano Luís de Granada, espanhol que morou a maior parte de sua vida em Portugal e cujas obras teria conhecido na biblioteca dos jesuítas. Lodge exilou-se e virou médico na França, voltou à Inglaterra, fugiu de novo, até obter proteção contra a perseguição religiosa. Foi o único dos seis "university wits" que sobreviveu aos excessos (boêmios, políticos, intelectuais) do grupo no início dos anos 1590.
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