Referência da fantasia com "As Crônicas de Gelo e Fogo", George R.R. Martin comenta a obra e a série Wild Cards, que ganha edição no país
Foi nos anos 1990. Na ocasião, "Wild Cards", coleção idealizada por Martin, foi adaptada em HQ na editora Globo e num suplemento da Devir para jogadores de RPG.
Àquela altura, o americano começava a escrever suas "Crônicas", que fariam dele uma das maiores referências da literatura fantástica, na qual J.R.R. Tolkien, de "O Senhor dos Anéis", é rei.
O Brasil só conheceria Martin em 2010, quando as "Crônicas" passaram a sair pela LeYa. Os cinco primeiros livros venderam 1,56 milhão de cópias. A estreia da versão televisiva, "Game of Thrones" (HBO), em 2011, ajudou.
Martin, 64, tem dois livros pela frente para concluir a saga de dragões e disputa de poder que já lhe tomou 22 anos de vida. É pressionadíssimo por fãs. Se alguém o vê falando de outros assuntos na internet, manda focar na série.
Esses fãs devem ficar divididos quanto ao motivo pelo qual, pela primeira vez, ele aceitou falar a um jornal brasileiro: o lançamento, aqui, do primeiro livro de "Wild Cards" --aquela série cujas adaptações passaram quase despercebidas nos anos 1990.
É uma coleção iniciada em 1987 e hoje com 22 livros, um misto de ficção científica com histórias de super-heróis. Vários autores, sob a batuta de Martin, partem dessa premissa: um vírus alienígena que, em 1946, infectou terráqueos com sintomas imprevisíveis. Alguns ganharam poderes; outros ficam deformados.
Martin hoje mais edita do que escreve em "Wild Cards". Numa conversa por telefone, do escritório de seu assistente em Santa Fé (Novo México, EUA), ele comenta o trabalho na coleção, em que extravasa sua paixão pelos quadrinhos, e nas "Crônicas". Leia a seguir os principais trechos.
Folha - Em "Wild Cards", o sr. leva os heróis dos quadrinhos para a literatura. Como é criar literatura a partir de um tema característico das HQs?
George R.R. Martin - Buscamos uma abordagem mais realista. Amo quadrinhos, mas há convenções do formato que não fazem sentido. Por exemplo, alguém que descobre ter poderes logo arrumar uma roupa de spandex para combater o crime.
No mundo real, se pudesse voar, bom, eu ainda seria um escritor, a diferença é que não andaria mais de avião.
Outra: quando eu era garoto, surgiu o Homem-Aranha, que, como eu, cursava o ensino médio. Concluí o ensino médio e entrei na faculdade, e o Homem-Aranha também.
Mas saí da faculdade em quatro anos, e ele levou uns 20. Depois, virou aquele recém-formado de 20 e poucos. Hoje ele está na mesma. Nesses casos, os criadores revisam a história para mantê-lo eternamente jovem. É uma armadilha na qual decidimos não cair em "Wild Cards".
Na nossa história, as pessoas que conseguiram superpoderes em 1946 agora estão aposentadas. E tiveram todo tipo de problema que as pessoas têm na vida.
Como é escrever em equipe para o sr., que faz questão de não ter nenhuma ajuda nas "Crônicas de Gelo e Fogo"?
Os autores escrevem e minha responsabilidade principal, embora eu também escreva, é juntar as histórias. Há um grande trabalho de reescrita, elas nunca ficam perfeitas juntas de primeira.
Eu conduzo a sinfonia, como se fosse uma "big band", com os instrumentos funcionando juntos. Editei várias publicações na vida, mas o trabalho em "Wild Cards" é o mais desafiador.
"Wild Cards" vai virar filme pela Universal. O sr. lida bem com a ideia de resumi-la a um único filme, algo que rejeitou para as "Crônicas"?
"Wild Cards" não é bem uma história, são centenas delas, é um mundo. O filme abordará um grupo de personagens. Se funcionar, um segundo filme pode retratar outros. É uma franquia incrível, que pode render uma série de filmes, que é o que esperamos, ou até uma série de TV. Mas estamos no estágio inicial. Melinda Snodgrass [autora da série e coprodutora do filme] está fazendo um segundo esboço do roteiro.
Os leitores no Brasil o conhecem mais como autor de fantasia que de ficção científica. É diferente criar uma e outra?
Não há grande diferença. Numa, você tem aliens e naves espaciais; na outra, dragões e cavaleiros. São histórias, e o coração de toda história são os personagens. Se você tem personagens com os quais os leitores se preocupem, funciona.
William Faulkner certa vez disse que o coração em conflito consigo mesmo é a única coisa sobre a qual vale a pena escrever. Acredito nisso. O gênero não importa tanto.
Se o gênero não importa tanto, e considerando que o sr. gosta de realismo, com política, violência e sexo, nunca pensou em abrir mão da fantasia?
Gosto de violência, sexo e política, é verdade [risos]. Mas amo a fantasia. Quando era criança, vivia da imaginação. Éramos pobres, não íamos a lugar nenhum. Vivíamos perto de um canal. Via embarcações e imaginava o que ocorria nelas. Comecei a pensar como seria estar em naves e daí por diante. Adoro viajar por mundos fabulosos.
O sr. ainda tem tempo para se dedicar a "Wild Cards"? Os leitores de "As Crônicas de Gelo e Fogo" permitem isso?
Bem, alguns ficam irritados. Mas hoje não escrevo muito para "Wild Cards". Faço a edição, o que demanda tempo, mas não tanto quanto escrever. Gostaria de escrever mais em "Wild Cards", mas não posso até terminar as "Crônicas". Tenho dois livros pela frente, isso vai tomar alguns anos, e ainda tenho a série de TV vindo atrás de mim [está na terceira temporada, e logo a trama alcançará o sexto livro, ainda inconcluso].
Os fãs de "Wild Cards" são intensos como os das "Crônicas"?
As "Crônicas" são a coisa mais bem-sucedida que fiz, então têm mais leitores. Mas os fãs de "Wild Cards" também sabem ser intensos, amam personagens, odeiam outros, debatem quem venceria quem numa briga.
No geral, adoro a intensidade dos fãs. A pior coisa é os leitores não se importarem, o que é a triste verdade para a maior parte dos escritores.
Muitos o pressionam para terminar as "Crônicas", até temem que não as termine. O sr. tem alguma orientação anotada, para o caso de não poder mais escrever?
Tenho algo anotado, sei como termina a história, mas não tenho tudo pensado, prefiro fazer isso à medida que escrevo. Essa é a aventura de escrever, quando os personagens vão a lugares não imaginados e até errados, me obrigando a reescrever.
Sou um escritor lento. Não imagino que isso vá mudar, então quem fica aflito terá de aprender a lidar com isso.
A série de TV está cada vez mais diferente dos livros. Há alguma solução dos roteiristas que o sr. chegou a achar melhor que as suas?
Adoro a série, mas gosto mais dos livros. Ajudou-me ter trabalhado em TV nos anos 1980 e 1990 [foi roteirista das séries "Além da Imaginação" e "A Bela e a Fera"]. Sei as alterações necessárias por questão de tempo e orçamento.
Os personagens têm de ser combinados, situações têm de ser modificadas. Eles fazem um trabalho excelente. De algumas mudanças eu gosto, por outras não são sou tão apaixonado. Mas entendo a necessidade delas.
As cenas que estão inventando para a nova temporada estão funcionando, muitas são perfeitas, estão entre as melhores da série.
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