A ciência permite que nos vejamos hoje tão próximos da extinção quanto da bonança infinita
O fenômeno é o mesmo -a complexidade-, mas, para um autor, ela trará a redenção da humanidade, na forma de energia e recursos inesgotáveis, enquanto, para o outro, implicará o colapso geral da sociedade. Para tornar as coisas um pouco mais complexas, é perfeitamente razoável sustentar que ambos estão certos.
Se queremos tornar a discussão pelo menos inteligível, convém começar pelo começo.
Numa definição para lá de problemática, "complexidade" é o termo que usamos para caracterizar sistemas compostos por muitas partes, que interagem de diversas maneiras, produzindo resultados que vão além da soma de seus componentes e são frequentemente imprevisíveis. O estudo de sistemas complexos e seus parentes, como a teoria do caos, emergência, dinâmicas não lineares, auto-organização, comportamento coletivo, abordagens holísticas etc., é a nova coqueluche da ciência.
O problema com a complexidade, como já insinuei no parágrafo acima, é que, além de ser complicada, ela anda perigosamente perto da imprevisibilidade ou, pelo menos, de diferentes graus de opacidade em relação ao futuro.
Para tornar o conceito um pouco menos abstrato, vale recorrer a um exemplo concreto. Pense numa carroça. Ela não é muito complexa. Você olha para o boi, as rodas, o eixo etc. e entende mais ou menos o que faz cada parte. Se ela quebrar, você pelo menos sabe qual peça precisa ser reparada ou substituída. Considere agora um avião moderno. Ele é complexo. Nenhuma de suas partes voa, mas elas interagem de forma a que o aparelho possa fazê-lo. E nem pense em consertar em casa o seu Airbus.
A complexidade não se limita a engenhocas. Ela também está presente em fenômenos naturais, como a meteorologia, e, principalmente, humanos. Há poucas coisas mais complexas do que a economia, por exemplo. Nela, milhões de agentes fazendo a mesma coisa quase sempre produzem efeitos qualitativamente diferentes dos que geraria uma única pessoa agindo deste modo.
INFERNO Como a complexidade se relaciona à destruição ou à salvação da nossa espécie? Seguindo o modelo de Dante, comecemos pelo Inferno. Aqui, nosso guia não é o poeta Virgílio, mas o matemático John Casti, especializado em teoria dos sistemas, que já lecionou em Princeton e nas universidades do Arizona e de Nova York, autor de "O Colapso de Tudo" [trad. Ivo Korytowski e Bruno Alexander, Intrínseca, 352 págs., R$ 29]. O subtítulo da edição brasileira é ainda mais ameaçador: "Os Eventos Extremos que Podem Destruir a Civilização a Qualquer Momento".
A primeira parte da obra traz uma explicação razoavelmente didática da complexidade e apresenta a noção de eventos X, que são acontecimentos relativamente raros, muito difíceis de prever (senão quanto ao "o quê", pelo menos quanto ao "quando") e que causam enorme impacto para grande número de pessoas. Estamos falando de coisas no patamar do 11 de Setembro ou da crise de 2008.
Não pretendo chatear o leitor descrevendo as propriedades matemáticas da complexidade e como ela se relaciona com os teoremas da incompletude de Gödel, mas creio que vale a pena destacar alguns dos sete princípios elencados por Casti, já que eles nos ajudam a entender melhor com que bicho estamos lidando.
O primeiro, que leva o nome de emersão, é justamente o fato de o todo diferir da soma das partes, como é o caso do seu Airbus.
O segundo princípio a merecer algum detalhamento é o mundialmente famoso efeito borboleta, um emblema da teoria do caos. A história de sua descoberta já revela suas propriedades.
O matemático Edward Lorenz testava modelos meteorológicos nos primeiros computadores -era 1960. Em certa ocasião, resolveu projetar cálculos no futuro, mas se serviu de dados que tinha numa planilha impressa para alimentar a máquina, em lugar de refazer tudo desde o princípio. No fim, os resultados do modelo original não batiam com os das projeções.
A diferença, Lorenz perceberia, tinha origem prosaica: na primeira conta, os dados numéricos iam até a sexta casa decimal, enquanto nas projeções iam só até a terceira, devido ao limite da impressora.
A diferença entre a terceira e a sexta casa -digamos, a diferença entre os números 0,506127 e 0,506- bastou para "produzir" climas totalmente distintos. Como ela era pequena demais para ser detectada pelos instrumentos meteorológicos existentes à época, Lorenz concluiu que teria sido possível que o bater de asas de uma gaivota provocasse, semanas mais tarde, um furacão do outro lado do mundo. A gaivota, para fins poéticos, virou borboleta, o que não mudou o conceito que diz que sistemas caóticos são patologicamente sensíveis a mudanças minúsculas no estado inicial.
O terceiro princípio que me parece mais relevante é a chamada lei da variedade necessária. Ela basicamente postula que, numa interação entre dois ou mais sistemas, aquele encarregado de exercer a regulação sobre o(s) outro(s) precisa ter pelo menos o mesmo nível de complexidade do(s) controlado(s). Se eles estão em patamares diferentes, é muito possível que sobrevenha um evento X para reequilibrar o jogo.
Um exemplo concreto é o do coletor de impostos. De um modo geral, ele conta com uma variedade de ações para cobrar que é muito menor do que as disponíveis para contadores, advogados e contribuintes evitarem o pagamento.
Como não é muito sábio conferir superpoderes a agentes públicos, a melhor forma de reduzir a diferença é diminuir a variedade de instrumentos ao alcance dos sonegadores. Isso se faz reduzindo a quantidade de leis, decretos, portarias e regimes de exceção (a complexidade) do sistema tributário.
TRAGÉDIAS Deixemos, porém, as questões teóricas e passemos ao ponto alto do livro de Casti, que é o guia das tragédias prestes a nos atingir. São 11 capítulos que fazem a alegria dos pessimistas, mostrando tudo o que pode dar errado. Os títulos e/ou subtítulos das seções são autoexplicativos: apagão digital, o esgotamento do sistema global de alimentos, um pulso eletromagnético destrói todos os aparelhos eletrônicos, o colapso da globalização, destruição da Terra pela criação de partículas exóticas, a desestabilização do panorama nuclear, o fim do suprimento global de petróleo, uma pandemia global, falta de energia elétrica e de água potável, robôs inteligentes sobrepujam a humanidade, deflação global e o colapso dos mercados financeiros mundiais.
São precisos altos níveis de paranoia para levar muito a sério certos cenários descritos pelo autor, como aquele em que um colisor de partículas acaba criando um buraco negro que suga o nosso planeta para sabe-se lá onde, ainda que eles sejam teoricamente possíveis.
Mas mesmo um realista tranquilo tem de admitir que vários dos casos levantados são não apenas verossímeis como prováveis. Ainda que não na escala imaginada por Casti, vários países já foram atingidos por blecautes mais ou menos generalizados. O problema fundamental é que os avanços tecnológicos cada vez mais complexos dos quais nos tornamos dependentes nos tornam extremamente vulneráveis a falhas nos sistemas.
Pior: como os próprios sistemas tendem a integrar-se e tornar-se dependentes uns dos outros, nossa vulnerabilidade aumenta: muitos dias sem energia significam não só falta de luz, mas também de água (que é bombeada), alimentos (que precisam ser resfriados), comunicações etc. Os distúrbios podem ser raros, isto é, os sistemas são individualmente seguros, mas, se dermos tempo suficiente, é certeza que eles ocorrerão.
Para dar uma ideia mais precisa de "colapso", vejamos mais de perto o que ele tem a dizer sobre a falta de comida que cedo ou tarde nos matará a todos. Casti começa o capítulo lembrando que existem pragas botânicas e cita o terrível fungo Phytophthora ramorum, que pode destruir florestas inteiras de árvores e pula de uma espécie para outra. Imagine agora uma mutação no Phytophthora que o torne capaz de infectar grãos e não apenas árvores, e os dias da humanidade estão contados.
Na sequência, ele se põe a analisar outras ameaças que pairam sobre as culturas vegetais, como a misteriosa morte das abelhas (que são agentes polinizadores), a escassez de água, a erosão dos solos, as mudanças climáticas, o aumento dos preços de petróleo e a maior produção de biocombustíveis, o crescimento da população. Nesse mundo, até uma boa notícia, como o enriquecimento de nações mais pobres (e o consequente crescimento da demanda), se torna um problema.
Antes de comprar seu jazigo no cemitério mais próximo, convém dar uma olhadela no outro lado da complexidade. Para nos servir de guia na viagem ao paraíso, escolhi não Beatriz, mas Peter Diamandis e Steven Kotler, autores de "Abundância - O Futuro É Melhor do que Você Imagina" [trad. Ivo Korytowski, HSM, 424 págs., R$ 69].
Diamandis é um milionário com formação em engenharia espacial, genética e medicina.
Kotler é jornalista científico. Ambos são seguidores do futurólogo Ray Kurzweil e membros ativos da Singularity University (SU), o "think tank" que pretende promover tecnologias que revertam para o bem da humanidade.
Quem leu "Cândido", de Voltaire, deve se lembrar do dr. Pangloss, o personagem doentiamente otimista inspirado em Leibniz. Pegue o otimismo de Pangloss, eleve-o a uma potência bem grande e você chegará perto do que diz o pessoal da SU. Para eles, estamos prestes a entrar numa era de superabundância, na qual tecnologias tornarão itens essenciais tão baratos que todos os habitantes da Terra terão acesso a bens e serviços até há pouco ao alcance apenas dos muito, muito ricos. E tudo isso no horizonte de uma geração.
O motor de tamanho progresso é a complexidade, mais especificamente o caráter exponencial do desenvolvimento tecnológico. Vale a pena dedicar algumas linhas a explicar melhor esse conceito.
Não faz muito tempo, o mundo era um lugar linear. Um músico até o século 19, por exemplo, recebia pelo número de execuções que fosse capaz de fazer. Sua plateia era limitada ao número de assentos no local de exibição e, se ele queria um par de trocados a mais, tinha de fazer uma apresentação extra.
Vieram, porém, o fonógrafo, a indústria do entretenimento, os computadores e entramos num universo exponencial. Hoje, um músico pode ficar milionário compondo uma única peça que faça sucesso. A casa cheia do mundo exponencial já não se restringe ao número de cadeiras no teatro, mas aos milhões, talvez até bilhões de terrestres que se disponham a baixar a canção em seus iPods.
A contrapartida disso é que a vida ficou mais difícil para os profissionais que não tiram a sorte grande (a maioria deles). Antes, eles tinham uma espécie de reserva de mercado, que era dada pela proximidade física necessária para escutar os sons emitidos pelos instrumentos. Essa barreira foi rompida. O trompetista do bar de jazz perto da sua casa concorre com todos os trompetistas do mundo, cujas performances estão disponíveis na internet.
LEI DE MOORE A tecnologia, muito mais do que os músicos, se beneficia desse caráter exponencial. A rapidez e a precisão do computador para fazer contas permitem a criação de programas mais sofisticados, que ajudam a produzir componentes mais eficientes, que melhoram a performance dos computadores, que... No final do processo, temos coisas como a Lei de Moore, segundo a qual os aparelhos dobram sua rapidez a cada 18 meses. E pelo mesmo preço.
Isso, é claro, tem impacto na vida das pessoas. Num exemplo citado pelos autores, hoje, um guerreiro massai com seu smartphone tem acesso a mais informações do que dispunha o presidente dos EUA apenas 15 anos atrás.
Para Diamandis e Kotler, revoluções semelhantes estão para acontecer no acesso a água, alimentos, energia, educação e saúde. No que é provavelmente o aspecto mais interessante do livro, a dupla descreve dezenas de pesquisas, algumas bem adiantadas, que poderão em breve mudar a face do mundo. São coisas como membranas que dessalinizam a água, carne (sem colesterol) sintetizada em tubos de ensaio, reatores nucleares portáteis (e seguros) e telefones celulares que realizam exames de sangue e fornecem diagnósticos de doenças a seus donos.
No ensino, eles preveem nada menos do que "educação praticamente gratuita e personalizada para qualquer um em qualquer lugar". Isso seria possível graças à convergência da "computação infinita com a inteligência artificial, a banda larga ubíqua e os tablets de baixo custo". Evidentemente, uma população muito mais instruída seria capaz de fazer a tecnologia avançar muito mais.
Num exemplo bem escatológico, Diamandis e Kotler falam da verba que a Fundação Bill e Melinda Gates disponibilizou para reinventar a privada. A ideia aqui é desenvolver tecnologias que permitam às pessoas ir ao banheiro sem gastar água nem precisar construir esgotos e, é claro, sem contaminar todos à sua volta.
Em teoria, é possível queimar a matéria fecal e produzir energia suficiente para transformar a urina em água potável e alguns poucos resíduos sólidos. Na verdade, como a queima das fezes expelidas por um ser humano típico dá um megajoule por dia, até sobraria um pouco de energia para carregar o seu celular. As tecnologias para isso já existem. O desafio é juntar tudo a um preço acessível.
Vale destacar aqui que o mentor Kurzweil vai além do que dizem os autores de "Abundância" e prevê para breve uma singularidade tecnológica, na qual o passo dos avanços seria "tão rápido que pareceria infinito". Isso culminaria na criação de uma superinteligência artificial, que nos permitiria manipular características humanas como o desempenho intelectual e sensorial, levando a uma era transumana. Evidentemente, aqui já nos afastamos do terreno das especulações inspiradas na ciência para nos aproximar perigosamente da religião em estado puro.
Quem tem razão? Casti ou a dupla Diamandis/Kotler? O colapso ou a singularidade?
Como destacamos no início do texto, ambos são consequências lógicas possíveis da maior complexidade tecnológica que trouxemos para nossas vidas. Excluídos os cenários mais catastróficos, que impliquem a extinção da humanidade, dificilmente poderemos cravar que um dos lados tenha triunfado.
A razão é que não há linha de chegada definida. Eventos X deverão se alternar com conquistas tecnológicas com potencial para transformar nossas vidas, condenando-nos a uma espécie de maldição de Cassandra, na qual as previsões mais otimistas serão desmentidas por acontecimentos trágicos, e visões muito pessimistas serão rechaçadas por avanços claros.
Por ora, Diamandis/Kotler estão com a vantagem. Para começar, nós ainda estamos aqui. De resto avanços científicos e tecnológicos respondem pelo fato de vivermos hoje mais e, em termos materiais, muito melhor do que nossos antepassados. A expectativa de vida ao nascer saltou de 26 anos na Idade do Bronze para quase 70 anos hoje, chegando a 80 nos países desenvolvidos. A captura de calorias passou de cerca de 2.000 por pessoa por dia, a alimentação mínima necessária para sobreviver, para perdulários 228 mil no Ocidente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário