domingo, 31 de março de 2013

Marcelo Gleiser

folha de são paulo

Mente e matéria
O desafio é que não podemos investigar a mente de fora para dentro. A mente tem de entender a si própria
Continuando minha discussão sobre as "Três Origens", após a origem da vida e do Universo nas semanas anteriores, hoje trato do tema talvez mais complexo: nossa mente. Minha intenção é apenas levantar alguns pontos que, espero, poderão inspirar debates sobre o assunto.
Foi Descartes quem, no século 17, famosamente escreveu "penso, logo existo". Para ele, mente e matéria eram coisas separadas. Nossa capacidade de reflexão não poderia ser reduzida a processos meramente materiais. A essência da razão é o pensamento, e a da matéria é a extensão.
E já que a física lida com processos materiais, a mente não é uma entidade física. O dualismo de Descartes garante que a física pode ser aplicada à matéria sem se enrolar tentando explicar a mente.
Hoje, essa separação não vinga. Existe apenas matéria, ou pelo menos não temos razão para supor que exista uma entidade imaterial capaz de interagir com a matéria. Do ponto de vista científico, algo imaterial não pode interagir com a matéria. Se existe uma interação, deve ser descrita pelas leis da física. Num exemplo meio prosaico, se alguém crê ter visto um fantasma, esse fantasma emitiu radiação eletromagnética no visível. Para ser visto, o fantasma interagiu com seu sistema visual e é uma entidade física, não tendo nada de sobrenatural.
Nosso cérebro, pesando em torno de 1,3 kg e com 86 bilhões de neurônios-um número que, graças à pesquisa de Suzanna Herculano-Houzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é bem menor do que os populares 100 bilhões- é a entidade mais complexa que conhecemos. A questão central das ciências cognitivas é saber como a rede neuronal, coligada através de trilhões de sinapses, gera a mente. Outra, é saber como a mente gera a consciência, que pode ser definida como a capacidade que temos de refletir sobre nós mesmos.
De certa forma, existe um paralelo entre a origem da mente e a da vida. Podemos entender a vida como uma propriedade emergente da matéria, algo que ocorre quando as reações químicas em um volume isolado (a célula) tornam-se capazes de se alimentar e de se reproduzir de forma autônoma. Seguindo o paralelo, a mente é uma propriedade emergente do cérebro, que ocorre quando o cérebro atinge um certo nível de complexidade neuronal. Ninguém sabe como ainda.
Existe também o aspecto evolucionário, as mudanças no cérebro desde espécies mais primitivas até o homem. A inteligência atua em níveis diversos, e defini-la é um problema. Existe o conceito de inteligência coletiva (formigas e abelhas), inteligência emocional e inteligência como capacidade de adquirir e aplicar conhecimento. A inteligência vem da arquitetura cerebral e está relacionada de forma não óbvia com o tamanho e nível de atividade neuronal. Se entendêssemos inteligência, já teríamos fabricado inteligência artificial.
O desafio que a mente nos apresenta é que, tal como o Cosmo, não podemos investigá-la de fora para dentro. A mente tem de entender a si própria. Mas atualmente não sabemos nem menos se a mente começa e termina no indivíduo ou se existem ligações entre indivíduos ou mesmo entre o indivíduo e o Cosmo. Mas isso fica para outra semana.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: goo.gl/93dHI

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