domingo, 31 de março de 2013

Porto inseguro: Salvador, 2001

folha de são paulo

GUILHERME WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA


Um dos módulos expositivos que viajaram na itinerância nacional da exposição Brasil 500 Anos foi a Carta de Pero Vaz de Caminha. Eram duas páginas da carta (um bifolio), que vinham acompanhadas de uma vitrine especialmente projetada para ela, permitindo um controle preciso de temperatura e umidade. A carta e a vitrine eram também acompanhadas de uma dedicada museóloga da Torre do Tombo de Lisboa, responsável por zelar pelas perfeitas condições do documento.
Depois de ter trabalhado no projeto expositivo da grande mostra ocorrida em São Paulo, em 2000, eu permaneci na equipe durante o ano seguinte, cuidando da instalação dos projetos de itinerância em outras capitais do Brasil. Em julho de 2001 levamos a exposição da carta de Caminha para Salvador, capital do Estado onde o documento havia sido escrito 501 anos antes. Certidão de batismo do país, a carta voltaria finalmente à Bahia, estação primeira do Brasil. O momento era muito auspicioso.
Concentrado na montagem da exposição, já na véspera da abertura eu ainda não sabia que a Polícia Militar baiana estava havia uma semana em greve e que, naquele dia, a Polícia Civil também acabara de aderir à paralisação.
Durante a noite, aconteceram os primeiros saques a lojas de departamento no centro, que deram ignição a uma enxurrada de arrastões e quebra-quebras que tomaram conta do dia seguinte, como num carnaval violento e sem redenção. Não dava mais tempo de cancelar a inauguração, e sabe-se lá por que razão a telefonia da cidade sofreu uma pane geral.
O hotel ficava a apenas 200 metros do museu, mas o recepcionista fez questão de me colocar em um táxi. Muito agitado, o motorista me falou de hordas de pessoas que o apedrejaram na avenida ACM e na Paralela. Todos os conhecidos desistiram de ir ao vernissage. Os desconhecidos também.
Uma pena, pois o bufê contratado preparou caprichadas porções de fartéis, um quitute português de gengibre que era transportado nas caravelas e foi servido aos índios, como descreve Caminha. Para piorar a situação, a notícia repentina de que a padaria vizinha ao museu acabara de ser assaltada pela segunda vez no dia nos deu a impressão de viver um estado de sítio. Apenas a equipe de montagem e o staff do museu estavam lá para prestigiar a carta. O que dizer à museóloga portuguesa? De forma sensata, ela guardou o seu higrômetro, percebendo que as condições de umidade e temperatura do ambiente já não representavam a principal ameaça.
Era perturbador o fato de a carta voltar cinco séculos depois para o seu lugar de origem, encontrando um cenário sem véus da realidade que ela viu nascer e batizou. Porto Seguro? Mais tarde, com a normalização da telefonia, soube-se que o então presidente Fernando Henrique Cardoso tinha liberado um contingente do Exército para assegurar a paz da cidade. Eles viriam pela manhã, de diversos pontos do país, com tropas terrestres e marítimas para a Bahia, como na Guerra de Canudos, conter o foco de desregramento e agitação.
Atinando vagamente para a convergência das coisas, deixei o pátio do museu e corri para a sala onde estava a carta, vazia àquela altura, contendo uma desoladora pintura realista com o monte Pascoal ao fundo. Tentei desvendar o conteúdo daquelas duas páginas que haviam sido aleatoriamente escolhidas para vir a Salvador, como se pudessem conter algum recado oculto sobre a situação presente.
Mas os garranchos abarrocados, somados à luz muito tênue sobre o documento, dificultavam muito a tarefa. Finalmente, fui me acostumando pouco a pouco com a grafia antiga e, tonto, já não sei se li ou inventei: "Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas".
Reconhecendo de algum lugar essa passagem, murmurei confiante sua continuação: "Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram."

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