PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO
DE SÃO PAULO
"Não podemos mais ignorar a voz interior das mulheres que diz: 'Eu quero algo mais do que ter um marido, filhos e um lar", decretou a feminista Betty Friedan, no seminal "A Mística Feminina", há 50 anos. Desde então, mulheres chegaram à presidência da República, ao Supremo Tribunal Federal, foram lançadas ao espaço, lutaram em guerras, comandaram multinacionais. Mas ainda não conseguiram fazer o básico: conciliar uma carreira bem-sucedida com a criação dos filhos.
"Não dá para fazer tudo. Ninguém consegue ter dois empregos, filhos perfeitos, preparar três refeições por dia e ter orgasmos múltiplos [...] a supermulher é a inimiga do movimento feminista", definiu a ativista Gloria Steinem em entrevista à apresentadora Oprah Winfrey, no ano passado.
Se a geração "heroica" de feministas se ocupava de bandeiras como a liberalização do aborto, o direito ao sexo casual, os métodos anticoncepcionais e a paridade de remuneração, a nova geração se concentra em uma questão mais prosaica. Afinal, há poucas mulheres em posição de liderança porque o sistema não ajuda quem precisa conciliar carreira e filhos (com babás, horários flexíveis, trabalho em casa), ou porque falta ambição às mulheres?
Quem põe a questão nesses termos é uma das chamadas "supermulheres": Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook (e mãe de dois filhos) que acaba de lançar seu livro "Faça Acontecer" [trad. Denise Bottmann, Companhia das Letras, 288 págs., R$ 34,50]. Apesar de várias ressalvas diplomáticas, o livro de Sandberg basicamente sustenta que não adianta culpar a falta de condições para a ascensão feminina na hierarquia corporativa. É preciso ir à luta. O que falta é ambição.
"Nós nos refreamos de várias maneiras, em coisas grandes ou miú-
das, por falta de autoconfiança, por não levantar a mão, por recuar quando deveríamos fazer acontecer. Interiorizamos as mensagens negativas que ouvimos ao longo da vida -as mensagens que dizem que é errado falar sem rodeios, ter iniciativa, ser mais poderosas do que os homens. Reduzimos nossas expectativas do que podemos realizar. Continuamos a cumprir a maior parte do trabalho doméstico e da criação dos filhos. Comprometemos nossas metas profissionais para dar espaço a companheiros e filhos que às vezes ainda nem existem."
Outra representante das supermulheres é Marissa Mayer, que em julho de 2012 foi contratada como CEO do Yahoo quando estava no ultimo trimestre de gravidez. O fato foi comemorado como o começo do fim da discriminação professional contra grávidas.
Mas logo Marissa anunciou: "Minha licença-maternidade vai ser de duas semanas e eu vou trabalhar durante o período". Ela não só montou uma sala de amamentação no escritório como acabou com a possibilidade de os funcionários do Yahoo trabalharem em casa, esquema essencial para muitas mães que tentavam conciliar filhos e carreira.
TER TUDO
Do outro lado da trincheira está Anne Marie Slaughter, ex-diretora da Woodrow Wilson School of Public and International Affairs e ex-diretora de planejamento de políticas do departamento de Estado dos EUA, cargo prestigiadíssimo que pertenceu a George Kennan.
Do outro lado da trincheira está Anne Marie Slaughter, ex-diretora da Woodrow Wilson School of Public and International Affairs e ex-diretora de planejamento de políticas do departamento de Estado dos EUA, cargo prestigiadíssimo que pertenceu a George Kennan.
No ano passado, Slaughter gerou enorme controvérsia com um ensaio publicado na revista "Atlantic", "Por que as mulheres ainda não podem ter tudo".
Escrito como resposta a uma palestra de Sandberg no TED Talks, que daria origem a seu livro, o texto afirma que as mulheres só vão conseguir chegar ao topo quando as barreiras institucionais forem removidas -e não quando as mulheres conseguirem se livrar das barreiras internas, como sustenta a executiva do Facebook. Slaughter pediu demissão de seu cargo no departamento de Estado para ser professora em Princeton, pois não estava dando conta de criar os dois filhos adolescentes, um dos quais tinha problemas de comportamento.
Para ela, mulheres que conseguem ser mães e superprofissionais ao mesmo tempo são sobre-humanas, milionárias ou autonômas que podem organizar seus horários. Sem a possibilidade de trabalhar em casa, ter horários flexíveis, acesso facilitado a berçários ou babás, as mulheres não vão conseguir "ter tudo".
Para ela, os conselhos de Sandberg "têm um tom de reprovação" e "fazem milhões de mulheres se sentirem culpadas por não conseguirem ascender na hierarquia profissional tão rápido quanto os homens e terem também vida familiar ativa (e, para completar, serem bonitas e magras)", escreve Slaughter.
"Questões mundanas como a necessidade constante de viajar, os conflitos de horário da escola dos filhos e do trabalho, a insistência em que o trabalho precisa ser realizado no escritório -nada disso vai ser resolvido com mais ambição por parte das mulheres", escreve Slaughter.
O pressuposto de Sandberg está certo. A revolução feminina veio, mas não venceu. Homens ainda mandam no mundo. De 195 países independentes, apenas 17 são liderados por mulheres. Apenas 21 dos CEOs das 500 maiores empresas da lista da revista "Fortune" são mulheres. Em 1970, mulheres recebiam 59 centavos para cada dólar ganho por um homem em cargo semelhante. Em 2010, recebiam 77 centavos.
Mulheres volta e meia se subestimam, enquanto homens se superestimam. Sandberg cita uma pesquisa com estudantes de cirurgia mostrando que , quando instadas a se autoavaliar, mulheres sempre se davam notas menores do que os homens, mesmo quando seu desempenho era nitidamente superior. Quando estimuladas a explicar seu sucesso, mulheres frequentemente dizem: "trabalhei muito duro", "tive sorte", "tive ajuda". Homens, em contrapartida, costumam creditar suas habilidades a si mesmos.
LUXO
O problema é que a tese das supermulheres como Sandberg só leva em conta metade da história. "O objetivo é nobre, ter mais mulheres em cargos de liderança; não critico, acho errado a mulher abrir mão do emprego para criar filhos, pesquisas mostram que as que fazem isso não são necessariamente melhores mães por causa disso", disse à Folha Stephanie Coontz, diretora de pesquisas do Conselho das Famílias Contemporâneas. "Mas falta de ambição não explica os problemas enfrentados pela maioria das mulheres, que não podem se dar ao luxo de ter uma sala de amamentação no escritório."
O problema é que a tese das supermulheres como Sandberg só leva em conta metade da história. "O objetivo é nobre, ter mais mulheres em cargos de liderança; não critico, acho errado a mulher abrir mão do emprego para criar filhos, pesquisas mostram que as que fazem isso não são necessariamente melhores mães por causa disso", disse à Folha Stephanie Coontz, diretora de pesquisas do Conselho das Famílias Contemporâneas. "Mas falta de ambição não explica os problemas enfrentados pela maioria das mulheres, que não podem se dar ao luxo de ter uma sala de amamentação no escritório."
Para Madeleine Kunin, primeira mulher a governar o Estado americano de Vermont e autora do livro "The New Feminist Agenda", o problema da tese de Sandberg é que ela acaba culpando as mulheres por sua baixa presença em cargos de chefia.
Os EUA estão ao lado de Libéria e Papua Nova Guiné como os únicos países do mundo que não preveem nem sequer um dia de licença-maternidade remunerada. Há apenas a obrigação de licença não remunerada de três meses para mulheres que trabalham em empresas com mais de 50 funcionários. Mas quantas pessoas podem se dar ao luxo de ficar três meses sem receber?
"Marissa Mayer e Sheryl Sandberg falam do ponto de vista de quem chegou ao topo, mas não reconhecem que é bem mais difícil para a maioria das pessoas, que não são privilegiadas como elas, não podem contar com várias babás, abrir mão de salário, negociar com o chefe para sair do escritório às 17h30", disse Kunin à Folha. "As mulheres costumam se culpar por tudo, e o livro de Sandberg contribui para isso."
"Parece um retrocesso que feministas como eu, que lutamos para nos libertar dos papéis limitados de esposa e mãe, tenhamos dado a volta para nos focarmos, novamente, na família", afirma Kunin. "No início da revolução feminina, não nos ativemos à questão de quem iria cuidar dos filhos. Partimos do pressuposto de que as coisas iam se ajeitar. Surgiriam locais para cuidar de crianças e o ambiente de trabalho magicamente se transformaria para atender às nossas necessidades."
E será que todas as mulheres querem ser líderes, trabalhar 60, 70 horas por semana, sacrificar finais de semana com os filhos? Pesquisa de 2012 da McKinsey, com mais de 4 mil funcionários de grandes empresas, mostra que 36% dos homens gostariam de chegar à direção, diante de apenas 18% das mulheres.
Algumas talvez queiram apenas ter um emprego menos desafiador, que lhes permita passar mais tempo com os filhos e não perder reuniões de pais, apresentações de dança, campeonatos de natação. E isso não é necessariamente ruim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário