domingo, 31 de março de 2013

Imaginação: Cor da Lua

folha de são paulo

ANTONIO GERALDO FIGUEIREDO FERREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

um mastiff fulvo-prateado
macho da cor da lua
dizia
passeava com o cão todas as manhãs
comprava a melhor ração, uma nota
veterinário da cidade vizinha
o melhor, professor de faculdade e tudo
ela amava de verdade aquele cachorro de 92 kg bem pesados
ganhou das amigas
dois meses depois que o marido sumiu de casa
um mastiff fulvo-prateado da corzinha da lua em certas noites
cresceu rápido
e ela pegou amor, pegou
deixou de pensar bobagens
e isso foi a salvação
meu marido fugiu com aquela biscate?
deixa
ele volta pro enterro
o remorso, vocês vão ver
que é isso, menina?
deixa de ser besta
e ganhou o cachorro
(as amigas fizeram uma vaquinha)
isso faz uns três anos, já
e agora isso, meu deus
foi nesses dias, coitada
um vizinho enxerido espalhando
subiu na jabuticabeira do quintal, o pé carregado
e viu
ele disse que viu
ficou espiando um tempão
ela engatada no cachorro
é, engatada, entende?
isso na semana passada
falou que o negócio se repetiu nos outros dias
pensa bem
é muito triste ser sozinho no mundo, é ou não é?
sei, sei, às vezes não
bom, pode ser coincidência,
ontem, quando ela passeava com seu mastiff fulvo-prateado
o cachorro deu um troço e escapou de repente
nunca tinha feito isso, nunca
quem pra segurar?
escapou correndo e se enfiou debaixo de um caminhão que passava
não, acho que não viu nada do outro lado, não
ele enfiou a cabeça debaixo da roda porque quis
*
super-herói
quando era pequeno, sabia que não poderia voar, apesar da vontade, claro, amarrava uma toalha no pescoço e era um super-herói que corria, voando com os pés no chão, como faziam muito gosto de que assim eu estivesse pelo resto da vida, e é mais ou menos o que tem acontecido, acho, em todo caso sabia que era tudo mentira, voar, estou falando de voar, mas vale pra vida, também, não disse isso, mas fica dito, então, pai, se pular de um prédio e abrir um guarda-chuva tem jeito?, ele ficava bravo, com medo de que eu pudesse me matar, esse moleque tem cada ideia, coisa da televisão, pondo minhoca na cabeça dessa criançada, deviam proibir, bem, na época tinha noção do que seria um suicídio, seis anos, hoje parece tão pouco, mas sabia o que era suicídio, tenho certeza, não imaginava, porém, que uma criança, bom, foi um primo, de vez em quando brincávamos, ele morava em são paulo e vinha pra cá nas férias, tínhamos a mesma idade, ele saltou do sétimo andar, ninguém soube o motivo, os pais apenas ouviram o baque, aquela gritaria, contaram, a polícia técnica foi incisiva, lembro-me do meu pai dizendo isso, na cozinha de casa, embasbacado diante da estupidez humana, suicídio, o menino se suicidou, repetiu, minha mãe chorando muito, sem querer me olhar, um menino tão normal, dizia, a minha avó estava conosco, meio passada, um menino tão bom, tão bom, e perguntavam a deus o porquê daquilo, naquele momento me lembrei daquela história das minhocas na cabeça, os vermes querendo voltar pra terra, pra um lugar que fosse mais perto da felicidade, e arrastaram meu primo pro buraco sem que ele percebesse, será?, na época comecei a desconfiar seriamente dos anjos da guarda, também, o que muito depressa contaminou toda a corporação religiosa, dos santos subalternos ao chefão, nada-poderoso, explico meu ateísmo desse jeitinho, hoje, sempre que alguém vem encher o saco, um menino pulando do sétimo andar, eu sabia que ele voara, pouco, mas voara, puxa vida, ele deu uma voadinha, pensava, vi o defunto com muito medo, meu pai me levantou, eu não queria, minha mãe também não, ele é criança, altair, vai impressionar o menino, deixa disso, leva ele lá pra fora, dá uma volta com ele, tem tempo pra aprender isso, não houve meio, meu pai me pegou no colo, fez questão de me tirar do solo onde em meu tamanho me fincara, protegido do primo morto, naquele instante um inimigo do mal, mas ele me levantou, eu não queria olhar, mas queria, também, então vi meu primo inchado, a cara achatada, é, ele não tinha nenhum superpoder, mesmo, a cabeça enfaixada, encobrindo os cabelos, olha aí o que acontece com quem não tem juízo, falou baixinho, só pra mim, olha aí, e aquilo ficou pra sempre na cabeça, então, até hoje, quando vejo algum menino com a fantasia do homem-aranha, do super-homem, não sei, dá um negócio ruim por dentro, um frio na barriga, acredita?

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