Com base em pesquisas da UFMG de mais de
três décadas, grupo cria alimentos voltados para pacientes que precisam
de cuidados especiais. Um dos produtos chega a 1,8 mil pessoas pelo SUS
Marinella Castro
Estado de Minas: 20/04/2013
Em
todo o mundo, cerca de 500 milhões de pessoas são portadoras de alguma
das 7 mil doenças catalogadas como raras, sendo 80% delas de origem
genética. O diagnóstico precoce e rápido, que pode surgir nos primeiros
dias de vida, é capaz de provocar uma revolução na qualidade de vida
desses pacientes, desenvolvendo uma complexa rede interligada pela
pesquisa científica e o acompanhamento médico especializado. Esse é o
caso da fenilcetonúria, diagnosticada nos primeiros dia de vida dos
recém-nascidos pelo Teste do Pezinho. A dieta alimentar, chave para
evitar deficiências no desenvolvimento neuromotor dessas crianças, levou
pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a colocar
em prática estudos de três décadas. Esse pode ser considerado um caso
claro de como a pesquisa científica, que muitas vezes leva anos para ser
depurada, retorna benefícios à sociedade.
Um dos exemplos
dessa realidade é a Profenil, dieta que funciona como remédio para 1,8
mil brasileiros portadores da fenilcetonúria e distribuída pelo Sistema
Único de Saúde (SUS). O composto foi criado por um grupo de
pesquisadores formado no Departamento de Ciência de Alimentos da
Faculdade de Farmácia da UFMG. A tecnologia nacional é importante porque
colocou no mercado um produto capaz de competir com linhas
internacionais, reduzindo o custo da dieta. Cada lata do alimento, que
deve ser consumido por toda a vida, custa cerca de R$ 100, e o consumo,
no caso de adolescentes, chega a quatro recipientes por mês.
Uma
pesquisa da Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica de Pesquisa
(Interfarma) publicada em março revela que entre 6% e 8% da população
mundial é atingida pelas chamadas doenças raras, somando entre 420
milhões e 560 milhões de pessoas. Desse total, cerca de 13 milhões estão
no Brasil. Em torno de 80% têm origem genética, o restante decorre de
infecções bacterianas e virais, alergias ou causas degenerativas. A
maioria, ou 75%, se manifesta no início da vida e afeta, sobretudo,
crianças de até 5 anos. Segundo o estudo, 95% das doenças não têm
tratamento e demandam serviços especializados de reabilitação que
promovam a melhoria da qualidade de vida dos pacientes.
Estima-se
que, em Minas Gerais, a cada mês, uma criança tenha o diagnóstico da
fenilcetonúria confirmado. O composto alimentar criado permite que os
pacientes da doença rara tenham uma vida normal e com a mesma
expectativa de longevidade do conjunto da população brasileira. Carlos
Lopes, pesquisador do grupo, explica que a pesquisa na área de alimentos
especializados teve início em 1977, com a professora Maria Alice
Silvestre. Já o alimento específico para atender portadores da
fenilcetonúria foi desenvolvido entre 2000 e 2010. Os pacientes com a
doença têm deficiência da enzima que degrada o aminoácido fenilalanina,
fazendo com que ele se acumule no corpo. “O tratamento é com dieta
restrita em proteínas e consumo de alimento isento em fenilalanina,
aminoácido que está presente em carnes, ovos, leite e derivados”,
explica.
A dieta, base para se evitar consequências como o
retardo mental irreversível, é um complemento alimentar que contém
aminoácidos livres, vitaminas e minerais, sem a fenilalanina. Segundo
Lopes, os últimos estudos apontam que a incidência da fenilcetonúria é
de um para cada 15 mil nascidos vivos. “Entre as doenças raras, é a de
maior incidência.” O estudo foi desenvolvido em três fases. A primeira
foi a compreensão total da patologia. “Depois, fizemos um levantamento
da real necessidade de desenvolvimento da dieta e só então partimos para
a criação da fórmula”, acrescenta.
NOVAS PESQUISAS Para a médica
geneticista do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Osvaldo Cruz
(Fiocruz), e diretora de relacionamento institucional da Sociedade
Brasileira de Genética Médica (SBG) Dafne Horovitz, as doenças raras
reúnem um grupo bastante heterogêneo de enfermidades e podem ter
repercussões diferentes em seus portadores, como retardo mental ou
má-formação.
“Individualmente, as enfermidades têm baixa incidência. No
entanto, observando o conjunto da população elas são frequentes”,
observa. A especialista acredita que no Brasil a pesquisa científica
abordando as inúmeras enfermidades classificadas como raras têm amplo
espaço para crescer, promovendo o desenvolvimento de alternativas
eficientes aos pacientes, e também de mais baixo custo, como o caso da
dieta especializada para os portadores da fenilcetonúria.
Para Dafne,
a organização do sistema público de saúde para atendimento desses
pacientes, inclusive com foco na prevenção e no aconselhamento genético,
é um dos caminhos importantes para promover uma melhor qualidade de
vida aos 13 milhões de brasileiros portadores das chamadas doenças
raras. “A consulta pública iniciada esse mês pelo Ministério da Saúde é o
primeiro passo para desenvolver no país a organização de um sistema
complexo.” Ela explica que a partir dos resultados da consulta deve ser
publicada uma portaria específica. Com isso, todo o segmento deve ganhar
estímulo positivo, da rede de atendimento aos pacientes à pesquisa
científica.
Diagnóstico O diagnóstico preciso é importante para
evitar que os pacientes de doenças consideradas raras sejam submetidos a
dietas ou a tratamentos, geralmente de custo elevado, sem a
correspondente comprovação científica. Henrique Oswaldo Torres, membro
da Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral, diz que a
fenilcetonúria é um bom exemplo de tratamento apoiado em diagnóstico
preciso. No entanto, ele lembra alguns casos, como a doença celíaca,
onde a restrição de alimentos à base de glúten só tem os efeitos
esperados nos portadores da doença, apesar de eles serem consumidos por
outros públicos.
O desenvolvimento da fórmula Profenil deu
origem à empresa Invita Nutrição Especializada, que faz parte da
incubadora de empresas da UFMG Inova e hoje está na incubadora de
empresas Habitat, da Fundação Biominas. “Repetimos na empresa o sucesso
do meio acadêmico. Queremos tirar o estigma do raro. No caso da
fenilcetonúria, há triagem e tratamento eficaz que pode solucionar o
problema”, afirma Carlos Lopes, que além de pesquisador é sócio e
diretor-executivo da empresa. Segundo ele, o grupo é o primeiro a lançar
no mercado a fórmula infantil para dietas com restrição à lactose.
enquanto isso...
...ministério da saúde abre consulta pública
O
Ministério da Saúde publicou no dia 11 a consulta pública do documento
que estabelece diretrizes para a atenção integral e acolhimento às
pessoas com doenças raras na rede pública. O objetivo é instituir a
Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doenças Raras no Sistema
Único de Saúde para oferecer atenção integral a pacientes com anomalias
congênitas, problemas metabólicos, deficiência intelectual e doenças
raras não genéticas. Também entra em consulta o texto que traz as normas
para a habilitação de hospitais e serviços que farão o atendimento a
esse público no país. Com a instituição da política para doenças raras, a
assistência será estendida aos familiares dos pacientes. A consulta
terá duração de 30 dias. Esse é o primeiro passo para a implantação de
uma política estruturada e organizada para atender doenças raras no
Brasil e na América do Sul.
Um teste revolucionário
No Brasil, a
triagem neonatal capaz de detectar doenças raras começou há mais de 30
anos. Em 1976, o médico Benjamin Schmidt criou o projeto pioneiro de
triagem para fenilcetonúria na Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais de São Paulo (Apae-SP). Na coleta de sangue para o exame
foi usada a técnica desenvolvida em papel filtro. Dez anos mais tarde, a
mesma instituição iniciou outra importante triagem neonatal, dessa vez
para o hipotireoidismo congênito. Segundo a Sociedade Brasileira de
Triagem Neonatal, a primeira legislação referente à triagem no Brasil
foi publicada em 1985, no Rio de Janeiro, tornando obrigatória a triagem
para o hipotireoidismo congênito e para a fenilcetonúria.
Experiência
de sucesso em Minas Gerais e referência no país, o Teste do Pezinho,
parceria entre a UFMG e municípios mineiros, faz a triagem anual de 250
mil bebês, com o diagnóstico preciso de quatro doenças raras:
hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria, anemia falciforme e fibrose
cística. Iniciado em 1993, o exame realizado pelo Núcleo de Ações e
Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad/UFMG) é decisivo para o diagnóstico
precoce. O Nupad realiza os testes em amostras coletadas nos 853
municípios de Minas. “Apenas 5% dos bebês nascidos no estado fazem o
teste por meios particulares”, atesta o coordenador acadêmico do Nupad,
Marcos Borato Viana.
A partir de 1º de maio serão incluídos no
teste outras duas doenças: a deficiência de biotinidase, que pode levar
ao déficit mental; e a hiperplasia adrenal congênita, doença que faz
com que a criança tenha deficiência de alguns hormônios e um exagero na
produção de outros, o que pode, inclusive, levá-la à morte.
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