Crueldade
com crianças indígenas e descaso com adultos doentes ou feridos em
aldeias do Rio Grande do Sul marcam uma das passagens mais dramáticas
descritas pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, em 1968, no
inquérito sobre abusos durante a ditadura, revelados pelo Estado de
Minas.
Graves violações de direitos humanos contra indígenas
explicitadas no Relatório Figueiredo ainda são desconhecidas de
entidades como a Comissão da Verdade, incumbida de apurá-las
Felipe Canêdo
Estado de Minas: 20/04/2013
Uma das passagens mais dramáticas descritas pelo procurador Jader de
Figueiredo Correia em 1968 é a que narra sua passagem por Guarita, no
Rio Grande do Sul, área da 7ª Inspetoria do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI), quando ele se deparou com duas crianças indígenas em péssimo
estado de saúde. “Em Guarita (IR-7-RGS), seguindo uma família que se
escondia, fomos encontrar duas criancinhas sob uma moita tendo as
cabecinhas quase completamente apodrecidas de horrorosos tumores,
provocados pelo berne, parasita bovino”, ele escreveu no documento que
entraria para a história com seu nome: Relatório Figueiredo. Sua
expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros investigando violações de
direitos humanos em 130 postos indígenas.
O inquérito por ele elaborado, desaparecido por 45 anos, foi
encontrado em caixas guardadas no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
Matéria publicada ontem pelo Estado de Minas mostrou como um pesquisador
de São Paulo se deparou com a papelada produzida pela investigação
feita a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, que, até
então, acreditava-se que havia sido destruída em um incêndio no
Ministério da Agricultura. Foram recuperadas mais de 7 mil páginas do
inquérito, produto da expedição comandada por Figueiredo, incluindo as
62 páginas pertencentes ao relatório final, entregue a Albuquerque Lima
em 1968. Os únicos registros anteriores eram reportagens feitas a partir
de uma entrevista concedida pelo procurador em março daquele ano, com
repercussão internacional.
Revoltado com os maus-tratos e com o descaso com que os índios eram
tratados por agentes do SPI, o que levou muitos à morte ou a ficar com
sequelas irreversíveis, Figueiredo exigiu que as crianças de Guarita
fossem atendidas por médicos. Quando passou por Nonoai, uma aldeia na
divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, o procurador descreveu
prisões que lembravam presídios do rei Luís XI, da França: “Uma cela de
táboas, apenas com pequeno respiradouro, sem instalações, que obriga o
índio a atender suas necessidades fisiológicas no próprio recinto da
minúscula e infecta prisão, foi apontada pelo chefe do posto, Nilson de
Assis Castro, como melhoramento de sua autoria”.
Uma das conclusões do procurador foi que os índios eram tratados
como animais. “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de
verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe
negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da
pessoa humana”, ele escreveu.
Divisor de águas A coordenadora do núcleo da Comissão Nacional da
Verdade responsável pela investigação de violações de direitos
relacionados à luta pela terra, Maria Rita Kehl, aponta o Relatório
Figueiredo como um divisor de águas nas políticas indigenistas do país.
“Depois do relatório, o SPI foi extinto e foi criada a Fundação Nacional
do Índio (Funai). Não sei dizer se essa mudança de gestão já preparava
terreno para um grande momento de políticas desenvolvimentistas na
Amazônia do final da década de 1970, que foi um momento de massacres
sistemáticos de índios pior ainda”, ela pondera. Segundo a psicanalista,
a comissão aguarda a conclusão da digitalização e recuperação do acervo
do Relatório Figueiredo para recebê-lo e só então começar a
investigá-lo.
“Eu não posso falar sobre o relatório porque ainda não o conheço,
mas é um documento oficial importante. Posso adiantar que é impossível
pesquisar todas as acusações contidas nele. A gente não tem como
investigar casos sobre um funcionário que agrediu um índio, por exemplo.
O que a gente tem que procurar são as grandes violações, matanças de
tribos. O nosso trabalho é gigantesco”, argumenta. Sobre a lista de
acusados apresentada no inquérito, com crimes elencados para cada nome,
ela também joga água fria nas expectativas de que sejam todos apurados.
Maria Rita faz uma ressalva também para as motivações políticas e brigas
internas do SPI contidas no relatório.
Mesmo assim, ela considera fundamental que as violações de direitos
humanos de índios e camponeses durante a ditadura sejam esclarecidas, já
que “muita gente ainda acha que quem foi morto ou torturado pelo regime
era terrorista. Isso é uma coisa que os militares espalharam. E não é
verdade. Muita gente foi morta em nome de um projeto”. Ela acrescenta
que os índios não sabiam quem estava governando, se era uma ditadura.
“Eles sabiam que os caras de botas pretas chegavam – como são descritos
em relatórios – e aí matavam, ou maltratavam”, afirma.
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