Do Texas ao Pampa, um mito internacional?
Começo minhas reflexões sobre esta bem conhecida tradição americana inventada, o caubói, com uma, ou melhor, duas perguntas interligadas que vão muito além do Texas. Por que populações de homens montados tangendo rebanhos em geral -mas nem sempre- se tornam assunto de mitos poderosos e tipicamente heroicos? E por que, entre tantos mitos desse tipo, aquele gerado por um grupo social e economicamente marginalizado de proletários desarraigados, que surgiu e desapareceu no decurso de duas décadas nos EUA do século 19, teve uma sorte global tão extraordinária, e a rigor tão única?
Não tenho condição de responder à primeira pergunta, que nos conduz, imagino, a um subterrâneo arquetípico junguiano muito profundo, no qual eu por certo me perderia.
A capacidade de pastores montados gerarem imagens tão heroicas, a propósito, não é totalmente universal. Duvido que ela se estenda costumeiramente a nômades pastoris, como os hunos, os mongóis ou os beduínos. Para as populações sedentárias com as quais esses nômades pastoris têm de coexistir como comunidades separadas, é provável que eles representem, primariamente, um perigo público: necessários, mas ameaçadores.
Os grupos que geram com mais facilidade o mito heroico, suponho, são as populações especializadas em andar a cavalo mas que, em certo sentido, ainda se mantêm vinculadas ao resto da sociedade; ao menos no sentido de que um camponês ou um rapaz da cidade possa imaginar a si mesmo como um caubói, um "gaucho" ou um cossaco. Seria concebível um rancho para turistas no qual mandarins da China imperial se comportassem como cavaleiros mongóis? Provavelmente não.
CAVALO Mas por que o mito? Que papel tem nele o cavalo, claramente um animal dotado de poderosa carga emocional e simbólica? Ou o centauro, que o homem que vive montado num cavalo representa? Uma coisa, no entanto, é certa. O mito é essencialmente macho. Apesar de "cowgirls" terem surgido, e desfrutado de certa voga, nos shows de faroeste e nos rodeios dos anos do entreguerras - supostamente em analogia com acrobatas de circo, uma vez que a combinação de feminilidade e audácia tem algum apelo de bilheteria-, depois disso elas desapareceram. O rodeio se tornou de fato coisa de macho.
Mulheres de classe alta que sabiam tudo sobre cavalos e participavam da caça à raposa com a mesma bravura dos homens -a rigor, com mais bravura, pois cavalgavam sentadas de lado, em silhões- eram muito conhecidas na Grã-Bretanha vitoriana, e sobretudo na Irlanda, onde o estilo predominante de caça à raposa era particularmente suicida.
Ninguém punha em dúvida sua feminilidade. Pode-se até sugerir, maliciosamente, que uma associação com cavalos era ponto positivo para a feminilidade numa ilha onde consta que até hoje os homens têm mais paixão por cavalos e bebidas do que por sexo. Ainda assim, o mito do cavaleiro é essencialmente macho, e até as cavaleiras sofríveis eram comparadas, com admiração, com guerreiras amazonas.
O mito tende a representar o guerreiro em atividade, o agressor, o bárbaro, o estuprador e não o estuprado. É altamente característico que o estilo dos uniformes europeus de cavalaria nos séculos 18 e 19, quase sempre obra de oficiais aristocratas ou de príncipes, fosse com frequência inspirado em roupas de cavaleiros semibárbaros que, na realidade, formavam unidades irregulares de auxílio em muitos exércitos: cossacos, hussardos, pandures.
VOCABULÁRIO Hoje, populações de cavaleiros e pastores selvagens existem num grande número de regiões do mundo. Alguns são estritamente análogos aos caubóis, como os "gauchos" das planícies do Cone Sul da América Latina; os "llaneros" das planícies da Colômbia e da Venezuela; possivelmente os vaqueiros do Nordeste do Brasil; decerto os vaqueros mexicanos dos quais na verdade, como todo mundo sabe, provêm diretamente tanto o traje do moderno mito do caubói como a maior parte do vocabulário próprio de sua atividade vacum: mustangue, laço, remuda (manada de cavalos ou "remonta"), sombreiro, chaps (perneira de couro), cincha, bronco (cavalo não domado), wrangler (cuidador de cavalos), rodeio ou até mesmo buckaroo (vaqueiro).
Há populações similares na Europa, como os csikos na planície húngara, ou puszta, os cavaleiros andaluzes nas zonas de criação de gado cujas maneiras aparatosas provavelmente deram o primeiro significado da palavra "flamenco", e as diversas comunidades cossacas das planícies meridionais russas e ucranianas.
No século 16 havia equivalentes exatos da trilha Chisholm que iam das planícies húngaras aos mercados das cidades de Augsburgo, Nuremberg e Veneza. E não preciso falar sobre o "outback", interiorzão australiano, essencialmente território de fazendas de criação, embora mais de carneiros que de vacas.
Não há, pois, escassez de mitos de caubói em potencial no mundo ocidental. Na realidade, praticamente todos os grupos que mencionei geraram mitos semibárbaros machos e heroicos de um tipo ou de outro em seus próprios países e às vezes mais além. Mas nenhum deles gerou um mito com séria popularidade internacional, menos ainda com uma popularidade que possa se comparar, mesmo que vagamente, com os azares do caubói norte-americano. Por quê?
Antes de fazer conjeturas em busca de uma resposta, quero dizer uma palavrinha ou duas sobre esses outros mitos de caubói. Faço isso em parte com o objetivo de chamar a atenção para o que todos eles têm em comum, mas sobretudo para lembrar a flexibilidade ideológica e política desses mitos ou dessas "tradições inventadas", aos quais voltarei num instante no contexto americano.
O que eles têm em comum é óbvio: tenacidade, bravura, o uso de armas, a prontidão para infligir ou suportar sofrimento, indisciplina, e uma forte dose de barbarismo, ou ao menos de falta de verniz, o que gradualmente adquire o status de nobre selvagem. Provavelmente também esse desprezo do homem a cavalo pelo que anda a pé, do vaqueiro pelo agricultor, e esse jeito fanfarrão de andar e se vestir que cultiva como sinais de superioridade. Acrescente-se a isso um distinto não intelectualismo, ou mesmo anti-intelectualismo. Tudo isso tem excitado mais de um sofisticado filho da classe média citadina.
Caubóis -mesmo caubóis da meia-noite- são brutais. Mas, além disso, refletem os mitos e realidades das sociedades a que pertencem. Cossacos, por exemplo, são homens bravios mas socialmente arraigados e "assentados". Um "Shane" [o protagonista de "Os Brutos Também Amam", interpretado por Alan Ladd] cossaco é inconcebível. O mito do interior australiano -e a realidade- é o de um proletariado com consciência de classe e organizado: por assim dizer, de um faroeste que poderia ter sido se fosse organizado pelos Wobblies. Condutores de gado podem muito bem ser aborígenes, em vez de brancos, mas os equivalentes locais do caubói, os tosquiadores de ovelha que migram de um lado para outro, eram homens de sindicato.
Quando um bando deles era contratado -ainda é assim- no meio de um bando de aparentes vagabundos que se deslocavam através do país em cavalos, mulas ou calhambeques, a primeira coisa que faziam era organizar uma reunião sindical e eleger um representante para negociar com o patrão. Não era assim que os homens se comportavam em Corral e arredores. Eles não eram, faço questão de acrescentar, esquerdistas ideológicos.
Quando em 1917 um grande número desses personagens do interior de Queensland organizou uma reunião para saudar a Revolução de Outubro e exigir sovietes, muitos foram presos -com alguma dificuldade- e revistados em busca de literatura subversiva. As autoridades não encontraram literatura subversiva, na verdade não encontraram literatura de espécie alguma, nesses homens, exceto um folheto que alguns levavam no bolso. Continha a seguinte mensagem: "Se água apodrece tuas botas, o que não fará ela com teu estômago?".
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