IMAGINAÇÃO
prosa, poesia e tradução
LIBÉRIO NEVES
Entanto antes apresento
o corpo a ti, doutor, para
a ciência dos teus dentros.
Tu vês o cérebro
em seus maciços de estanho,
mas não dissecas os versos
aí regurgitando
inconclusos ou inéditos.
Vês no avesso em mim a pele,
mas não seus arrepios
de febre ou dor ou medo
no amplo dos meus pelos.
E vês dentro das veias
o sangue escura sombra.
Os genes, tu não vislumbras
da ira funda contida
no amarrar-me amargo à vida.
Vês os nervos estendidos
com suas cordas dormidas,
e nunca sabes perceber
as vibrações mais vivas
dos meus íntimos tremores.
E tens em mãos o coração!
Mas não levas o poder
(indo além do endocárdio)
de reter estes impulsos
do meu secreto amor.
Então eu dou à terra
pulmões e unhas e ossos
e outras partes singulares.
Não posso dar os versos,
não posso meus arrepios
nem as iras e as tremuras
voando com os meus amores
dissolvendo-se nos ares.
TEMPLO DE VIDRO
Nesta sala sou vários,de invariável fala
quanto mais me vejo,
duplos me olham e calam.
Nesta sala me concentro,
entre íntimos detalhes
quanto mais sou tantos,
mais cicatrizes e calos.
Nesta sala sou vários,
entanto íntimo sou só
quanto mais me vejo,
os olhos me consolam.
Nesta sala dos espelhos,
plena é a luz interior
quanto mais o brilho,
nela (noturno) sou amor.
ELEGIA 18
Mais de cem relógiosnas paredes da sala
tocam as horas adiante.
Um relógio, entanto,
invertido em sua ronda
anda com os ponteiros
voltando para o ontem.
Vibram os relógios
em coro, tiquetaque,
e taquetique ele torna
ao refluxo do tempo.
Seus ponteiros pacientes
passo a passo pingando
gota a gota destilam
incensos na lembrança.
Hipnotizam, acenam
para o regresso do homem
aos olhos da criança.
O relógio fantasma
em sentido leste-oeste
impõe com jornada
viajar o viajado.
Vou reviver lugares,
essas visões familiares
presentes no passado.
São valores perenes
longe e bem lembrados:
as manhãs ressoando
veredas da juventude,
as noites orvalhando
trilhas lá da infância.
Aonde mais, tão leve,
me quer levar o relógio
em seu contrário tempo?
Um nevoeiro me enleia
nuvens me enovelam
no chão, amorosamente.
Vou fluir o rego-dágua
para mover o monjolo
em seu compasso longo.
Reerguer os galos
revoar os gaviões
patear os cavalos
e as éguas no rebanho.
Vou uivar os cães
ruminar os bois
adormecer no pai
e no calor da mãe.
Mas, ao final, é este
o relógio do sonho:
não acompanha a sombra
nem o clarão do dia
ou o soar do vento.
No amplo da sala
ponteiam-se as horas
compassadamente.
ÉGUAS
furiosas belaspelas invernadas
como rosas elas
em disparada
mas um balanço leve
como se só o vento
movesse-lhes as ancas
em seus movimentos
éguas vermelhas
negras e brancas
rosas pedreses
baias e pampas
as suas crinas de náilon
como chicotes no estalo
manso do vento nas pétalas
batendo e soprando nelas
em cio
as éguas maciças
macias e ardentes
relincham no viço
dos pelos luzentes
onde o cavalo esfrega
e morde e estremece
ante o clamor da posse
e da total entrega
as patas empinadas
o bufo nas escumas
o lombo retesado
em vertical apruma
e sobe nas estruturas
a colossal coluna
e centra-se em profundo
nas suas crias futuras.
- folha de são paulo
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