domingo, 7 de abril de 2013

Doação - Libério Neves


IMAGINAÇÃO
prosa, poesia e tradução
LIBÉRIO NEVES
Dou minha matéria à terra.
Entanto antes apresento
o corpo a ti, doutor, para
a ciência dos teus dentros.
Tu vês o cérebro
em seus maciços de estanho,
mas não dissecas os versos
aí regurgitando
inconclusos ou inéditos.
Vês no avesso em mim a pele,
mas não seus arrepios
de febre ou dor ou medo
no amplo dos meus pelos.
E vês dentro das veias
o sangue escura sombra.
Os genes, tu não vislumbras
da ira funda contida
no amarrar-me amargo à vida.
Vês os nervos estendidos
com suas cordas dormidas,
e nunca sabes perceber
as vibrações mais vivas
dos meus íntimos tremores.
E tens em mãos o coração!
Mas não levas o poder
(indo além do endocárdio)
de reter estes impulsos
do meu secreto amor.
Então eu dou à terra
pulmões e unhas e ossos
e outras partes singulares.
Não posso dar os versos,
não posso meus arrepios
nem as iras e as tremuras
voando com os meus amores
dissolvendo-se nos ares.
TEMPLO DE VIDRO
Nesta sala sou vários,
de invariável fala
quanto mais me vejo,
duplos me olham e calam.
Nesta sala me concentro,
entre íntimos detalhes
quanto mais sou tantos,
mais cicatrizes e calos.
Nesta sala sou vários,
entanto íntimo sou só
quanto mais me vejo,
os olhos me consolam.
Nesta sala dos espelhos,
plena é a luz interior
quanto mais o brilho,
nela (noturno) sou amor.
ELEGIA 18
Mais de cem relógios
nas paredes da sala
tocam as horas adiante.
Um relógio, entanto,
invertido em sua ronda
anda com os ponteiros
voltando para o ontem.
Vibram os relógios
em coro, tiquetaque,
e taquetique ele torna
ao refluxo do tempo.
Seus ponteiros pacientes
passo a passo pingando
gota a gota destilam
incensos na lembrança.
Hipnotizam, acenam
para o regresso do homem
aos olhos da criança.
O relógio fantasma
em sentido leste-oeste
impõe com jornada
viajar o viajado.
Vou reviver lugares,
essas visões familiares
presentes no passado.
São valores perenes
longe e bem lembrados:
as manhãs ressoando
veredas da juventude,
as noites orvalhando
trilhas lá da infância.
Aonde mais, tão leve,
me quer levar o relógio
em seu contrário tempo?
Um nevoeiro me enleia
nuvens me enovelam
no chão, amorosamente.
Vou fluir o rego-dágua
para mover o monjolo
em seu compasso longo.
Reerguer os galos
revoar os gaviões
patear os cavalos
e as éguas no rebanho.
Vou uivar os cães
ruminar os bois
adormecer no pai
e no calor da mãe.
Mas, ao final, é este
o relógio do sonho:
não acompanha a sombra
nem o clarão do dia
ou o soar do vento.
No amplo da sala
ponteiam-se as horas
compassadamente.
ÉGUAS
furiosas belas
pelas invernadas
como rosas elas
em disparada
mas um balanço leve
como se só o vento
movesse-lhes as ancas
em seus movimentos
éguas vermelhas
negras e brancas
rosas pedreses
baias e pampas
as suas crinas de náilon
como chicotes no estalo
manso do vento nas pétalas
batendo e soprando nelas
em cio
as éguas maciças
macias e ardentes
relincham no viço
dos pelos luzentes
onde o cavalo esfrega
e morde e estremece
ante o clamor da posse
e da total entrega
as patas empinadas
o bufo nas escumas
o lombo retesado
em vertical apruma
e sobe nas estruturas
a colossal coluna
e centra-se em profundo
nas suas crias futuras.
    folha de são paulo

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