domingo, 5 de maio de 2013

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Artistas que conquistaram público nos anos 1970 e foram discriminados por críticos e intelectuais criaram padrão estético próprio para falar do amor e de problemas sociais 


Ana Clara Brant

Estado de Minas:
05/05/2013 


Na definição do Aurélio, a palavra popular tem significados distintos. “Do, ou próprio do povo, ou feito por ele. Produzido, distribuído ou adaptado para ser acessível ao uso ou consumo por grande número de indivíduos, especialmente os com menor poder aquisitivo.” Pode ser também algo vulgar e trivial, ou ainda aquele que se torna conhecido, divulgado e estimado pelo povo.”

Um grupo de artistas da nossa música se encaixa muito bem em praticamente todas essas definições. Com canções que falam do cotidiano e de questões do dia a dia de uma maneira simples e objetiva, estão há anos na estrada e fazem grande sucesso, principalmente entre as camadas mais populares, independentemente de figurarem na grande mídia.

O Estado de Minas inicia hoje uma série de reportagens contando um pouco da trajetória dessas personalidades artísticas, como o goiano Odair José, os fluminenses Benito di Paula e Luiz Ayrão, e o mineiro Agnaldo Timóteo. Nomes que desempenham papel de destaque na memória oficial da música brasileira deram seus depoimentos, relembrando suas experiências, pontos de vistas, tropeços e conquistas.

“Assim como um Chico Buarque, um Milton Nascimento ou um Caetano Veloso, esses artistas fazem parte da música popular brasileira e têm a mesma importância na nossa cultura que as demais vertentes. Não estamos discutindo a estética, se é bom ou ruim. Mas eles merecem ser reconhecidos como todos os outros”, destaca a historiadora e professora Heloísa Starling, que é coordenadora do Projeto República: Núcleo de Pesquisa, Documentação e Memória, da UFMG.

Alguns destes cantores e compositores sofreram muito preconceito de críticos e jornalistas e chegaram a ser tachados de bregas ou cafonas, rótulo que boa parte deles rejeita. Autor dos livros Roberto Carlos em detalhes e Eu não sou cachorro não, em que pesquisou a história da chamada música cafona entre 1968 e 1978 – os anos de chumbo da ditadura civil-militar no Brasil –, o historiador e jornalista Paulo César de Araújo explica que a palavra brega se referia aos prostíbulos no interior da Bahia. Nesses locais, as músicas executadas eram as de Odair José, Waldick Soriano e Fernando Mendes, entre outros. Por isso a associação imediata. O termo se tornou um estilo musical em que boa parte de seus representantes tocam canções românticas, que expressam vivências e sentimentos dos segmentos populares e o cotidiano da população. “E é o estilo dominante na música brasileira. São os artistas que mais tocam e mais vendem em todo o país. No Norte, no Sul, no subúrbio, no interior. Eles são cronistas do seu tempo, assim como o Noel Rosa foi um cronista dos anos 1930. Cada um tem a sua variável, como o bolero e o samba joia, mas todos falam do cotidiano de uma maneira direta e por isso a identificação do povo com o gênero”, analisa Araújo.

Censura

Heloísa Starling também ressalta o objetivo desse tipo de música e acredita que para o que ela se propõe é de excelente qualidade. A historiadora acrescenta que cantores como Odair José, Agnaldo Timóteo e Wando, por exemplo, têm o mérito de levar temas importantes da sociedade para os setores mais populares. “A música brasileira produz opinião, produz determinadas ideias e conceitos, e coloca pontos de vista em circulação. Esses artistas são os responsáveis por levar temas até proibidos, como homossexualismo, prostituição e a valorização das domésticas, para essa classe mais popular. E cumprem isso com muita competência. Sem falar que alguns chegaram a ter várias obras barradas pela censura, como o próprio Odair”, frisa.

A discriminação que figuras como Waldick Soriano, Evaldo Braga, Nelson Ned, Paulo Sérgio, Lindomar Castilho e tantos anos tiveram nos anos 1970 e 1980 se deve, segundo Paulo César de Araújo, ao fato de que nessa época a elite musical brasileira definia os artistas nacionais entre tradicionais – identificados com o samba e o forró de raiz – e entre os modernos, que tiveram influência do jazz e da poesia concreta, como Caetano Veloso e Lenine, por exemplo. “Quem não se enquadrava em um desses dois campos não era valorizado. E foi isso que aconteceu com boa parte dos artistas tidos como cafonas. Mas, particularmente, coloco o Waldick Soriano no mesmo patamar de um Nelson Cavaquinho. Não vejo diferença”, opina Paulo César.

Já o jornalista, pesquisador, escritor e produtor musical Rodrigo Faour diz que essa turma de músicos surgiu em período extremamente profícuo da cultura brasileira. Foi nas décadas de 1960 e 1970 que apareceram nomes como Chico, Caetano, Gil, Milton, Gal, Elis, Bethânia, Gonzaguinha e outros, e o padrão intelectual da classe média era muito mais alto e exigente do que hoje. Talvez por isso, as coisas consideradas piegas eram subestimadas. “Estava em atividade uma geração genial, que era o pessoal que veio dos festivais, a maioria de nível universitário. Eles tinham uma sofisticação poética, de letras, de harmonia e arranjos. Já os considerados bregas vieram de origem mais humilde, mas falavam da mesma coisa que os chamados intelectuais, porém de maneira bem mais simples. Até o próprio Roberto Carlos era considerado cafona nesses anos”, recorda Faour.

O pesquisador lembra que a coisa começou a mudar no início dos anos 1990, quando houve uma decadência geral da MPB e a maioria dos cantores e compositores mais populares passaram a ser valorizados. “A qualidade caiu de uma maneira geral e isso tem a ver com a falência da indústria fonográfica, essa busca pelo sucesso e pelo lucro rápido, a ascensão da classe C. Começou a valer tudo. Por um lado é ótimo, porque esses artistas como o Wando, o Waldick e o Odair começaram a ter seus trabalhos reconhecidos por setores que nunca os valorizaram. O tempo acaba absorvendo certos artistas populares que têm alguma qualidade. O mais curioso é que, hoje, nossa música que está em alta é a brega e gente que surge no cenário atual, como a Gaby Amarantos, não sofre tanto preconceito como os de antigamente. O tempo proporciona isso”, avalia.

Enquanto isso...
...nas ondas do rádio


De segunda a sábado, os admiradores da música popular podem curtir a programação do Super popular,
transmitido pela Rádio Favela FM, apresentando clássicos de Odair José, Wando, Waldick Soriano, Evaldo Braga e companhia limitada. A cada canção, o apresentador Misael Avelino dos Santos solta um bordão bem-humorado, como: “Uma ficha, uma pinga, um torresmo e um prestobarba”. O programa vai ao ar das 7h às 10h.



Bob Dylan da Central 

Com 10 milhões de discos vendidos, Odair José foi perseguido pela censura e considerado brega. Artista goiano deu a volta por cima, mantém rotina de shows e é cultuado pelo público jovem 



Ana Clara Brant



Com 10 milhões de discos vendidos, Odair José foi perseguido pela censura e considerado brega
Já o chamaram de o terror das empregadas, de Hank Williams brasileiro, de o cantor da pílula. Mas para ele sua melhor definição é “Bob Dylan da Central do Brasil”. O goiano Odair José, de 64 anos, ganhou esse apelido da jornalista Hildegard Angel, lá pelos idos dos anos 1970, quando estava no auge de sua popularidade. “Nem sei se ela estava ironizando, mas achei perfeito. No começo me assustei, até porque nem sou tão fã assim do Bob Dylan. Mas com o tempo entendi melhor. Central do Brasil é aquela estação em que as pessoas descem do subúrbio, está todo mundo ali naquela correria do dia a dia, misturado. E gosto de me misturar com o povo, gosto de cantar para ele também”, afirma o artista.

Apesar de ter passeado principalmente pela música romântica, Odair não consegue estabelecer qual é o seu estilo. E acha curiosos os rótulos que colecionou. “Se você pegar os discos de heavy metal, de funk, de rock e pop, eles falam de amor. Só porque falo de amor significa que minha música é romântica? Escrevo sobre o amor, mas sobre o cotidiano, o social, as coisas do dia a dia. Meu estilo é esse. No caso das empregadas, foi até curioso, porque fiz uma única música sobre elas e fiquei marcado com isso. Acho que nem agrado tanto a elas como o Roberto Carlos ou o Amado Batista. Já com relação ao Hank Williams, inventaram isso. Nunca o ouvi na vida, nem sei como ele toca. É melhor me chamarem de Bob Dylan mesmo, porque pelo menos ele eu conheço”, diz.

É por falar do povo e para o povo que o cantor acredita ter conquistado um séquito de fãs. Odair José diz não ter restrições com relação ao tipo de público e que o importante é tocar o coração de cada um. “Não me incomodo de cantar para o pedreiro, para a pessoa sem formação, sem estudo, para o bêbado, para a prostituta. Tenho, inclusive, uma canção que fiz para a prostituta. Eu as admiro. Não me importo com a classe que está do outro lado me ouvindo. Se o cara é formado em medicina, direito ou se ele é analfabeto. Isso não faz a menor diferença”, frisa.

Com 44 anos de carreira, Odair contabiliza 35 discos, sendo que os da década de 1970 venderam pelo menos 600 mil cópias cada. Só o de 1972, Assim sou eu, vendeu mais de 1 milhão. Por isso o cantor e compositor, nascido em Morrinhos, no interior de Goiás, faz questão de exaltar seu trabalho e defende que permanece há anos no meio artístico porque tem seus méritos. E ainda salienta que não lhe agrada ser tachado de brega, já que na sua concepção este termo é pejorativo e se refere às músicas sem qualificação. “Se tenho 40 anos de carreira e ainda faço shows focando nessas músicas compostas em 1970, é porque elas têm qualidade. Não é porque dei sorte e estava na hora certa, no lugar certo. Ralei muito e fiz sim um bom trabalho. Nada que não é benfeito não dura tanto tempo. Dentro daquilo que me propus fazer, acho que sempre teve qualidade, pelo menos, na maioria dos momentos. E também não gosto de me chamarem de brega, porque isso, para mim, é quando a música é ruim. Meu trabalho pode até não ser tão genial assim, mas também nem tão ruim para ficar nesse balaio”, pontua.

Responsável por clássicos como Eu vou tirar você deste lugar, A noite mais linda do mundo, Assim sou eu, Cadê você (que estourou com a dupla Leandro & Leonardo nos anos 1990) e Essa noite você vai ter que ser minha, Odair José chegou a ter problemas com a censura, inclusive com um do seus maiores sucessos: Uma vida só (Pare de tomar a pílula). A canção foi proibida pelos militares pelo suposto entendimento de que fazia propaganda contrária à distribuição de pílulas para o controle de natalidade. “A função dos censores não era só proibir o Chico Buarque de falar mal do governo. Eles também não gostavam que você falasse do amor explícito. Aquele amor de pegar na mão, de beijo no portão, já não era uma verdade. As pessoas estavam encostando no muro, fazendo sexo escondido dentro do carro, indo para motel. Comecei a falar disso e a censura não gostou. Se for comparar a minha música daquela época com estas de hoje, do arrocha, do sertanejo, a minha é muito inocente. A censura chegou a atrapalhar muito o meu processo de criação”, lamenta o cantor, que é casado há 28 anos com Jane, uma mineira de Mato Verde, Norte do estado.

Beatles


Fã dos rapazes de Liverpool, especialmente Paul McCartney e John Lennon (Odair até compôs a canção Eu queria ser John Lennon), o artista revela que teve grande influência dos Beatles, apesar de muita gente nem imaginar. Na apresentação que fez em BH ao lado da banda Dead Lover’s no começo de abril, no Granfinos, a correia de sua guitarra tinha a imagem de Paul. “Passei a vida inteira ouvindo Cat Stevens (cantor e compositor britânico que passou a se chamar Yusuf Islam) e tentando parecer com ele ou com o próprio Paul McCartney. Mas preferem dizer que copiei o Roberto Carlos ou Hank Williams. Essas desinformações me incomodam. Desde o meu primeiro disco tento ser um pouco de Paul McCartney, o que é muito difícil. A minha referência é essa. Gostaria de fazer 5% do que o Paul faz”, declara.

De uns anos para cá, Odair José foi “redescoberto” pela juventude e virou até um cantor cult. Para ele, foram os músicos da nova geração, como Zeca Baleiro (responsável pela produção do seu último disco, Praça Tiradentes), Guto Borges, Carlinhos Brown e até os Titãs e o Pato Fu que proporcionaram esse ressurgimento. E, consequentemente, se o artista mais jovem o descobre, acaba trazendo com ele seu público. “Fico impressionado com a quantidade de jovens nos meus shows. E isso me dá uma energia enorme, me deixa renovado. E vou te confessar que eu mesmo passei a respeitar mais o meu trabalho, ao saber que muita gente via as minhas músicas com esse olhar de admiração. Passei a ter mais disciplina e gostar mesmo disso. Hoje, me divirto demais e me dá prazer, principalmente na hora de tocar, que não gostava muito”, revela o artista, que se prepara para lançar o primeiro DVD da carreira, gravado em um show em Curitiba.

Odair não costuma fazer planos,  “ainda mais na minha idade, o futuro é agora”, porém pretende produzir um disco de músicas inéditas ainda este ano, ao lado de sua banda, que conta com o filho Júnior, de 19 anos, que toca baixo e guitarra. “Tenho umas 12 músicas novas pelo menos, que considero muito boas. Elas merecem ser gravadas e vão refletir a realidade do Odair José hoje. A única coisa que quero e importa é que as pessoas saibam quem sou de verdade”, conclui.

Cante com Odair

Uma vida só
(Pare de tomar a pílula)

Já nem sei há quanto tempo
Nossa vida é uma vida só
E nada mais

Nossos dias vão passando
E você sempre deixando
Tudo pra depois

Todo dia a gente ama
Mas você não quer deixar nascer
O fruto desse amor

Não entende que é preciso
Ter alguém em nossa vida
Seja como for

Você diz que me adora
Que tudo nessa vida sou eu
Então eu quero ver você
Esperando um filho meu
Então eu quero ver você
Esperando um filho meu

Pare de tomar a pílula
Pare de tomar a pílula
Pare de tomar a pílula
Porque ela não deixa o nosso filho nascer

Você diz que me adora
Que tudo nessa vida sou eu
Então eu quero ver você
Esperando um filho meu
Então eu quero ver você
Esperando um filho meu

Saiba mais
ópera rock

Em 1977, Odair José surpreendeu a todos e criou algo bem diferente do que estava acostumado a fazer: uma ópera rock, um disco conceitual chamado O filho de José e Maria, que contava a história de um homem amargurado (filho de José e Maria) que depois de muito tempo, já aos 33 anos, decide assumir a homossexualidade. O álbum não fez muito sucesso e chegou, inclusive, a desagradar a setores da Igreja Católica.

Perfil

» Odair José de Araújo
» Nascido em Morrinhos, Goiás, em 16/8/48
» Maior sucesso: Uma vida só (Pare de tomar a pílula)
» Estimativa de vendagem em 44 anos de carreira: 10 milhões de discos
» Disco mais recente: Praça Tiradentes (2012)


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