URBANISMO
JOSÉ LUIZ PORTELLA PEREIRA
RESUMO
Colunista do site da Folha, ex-secretário de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo e ex-secretário de Serviços e Obras da Prefeitura de São Paulo analisa a histórica cultura paulistana de irregularidades. Para ele, recente prorrogação de prazo para regularização abre oportunidade uma virada estrutural.
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São Paulo é uma cidade irregular. Além do que se pensa. Há mais tempo do que se imagina. Surgiu nova incerteza a alimentar essa saga. A Prefeitura prorrogou, por um ano, o prazo para regularizar imóveis com atividades comerciais, industriais e de prestação de serviço em áreas de até 1.500 m². Segundo os vereadores, 70% do comércio de periferia está fora das normas do Certificado de Conclusão.Agora, até 31 de março de 2014 a regularização pode ser solicitada. Fechar tudo provocaria um caos. É verdade. Ocorre que as irregularidades vêm se acumulando há anos, acompanhadas com complacência. Posterga-se, sem encaminhar a solução. O repórter Pedro Tomé apurou que nem a Prefeitura nem a Câmara tinham resposta. Sem saber como lidar com o problema, 48 horas antes do prazo, a Prefeitura postergou-o para 2014.
Alguém sabe que risco real as irregularidades desses imóveis oferecem? Não se obteve resposta. Não se pune quem merece nem se resolve o problema de quem vive um drama de Kafka. A cidade ilegal representa um microcosmo social como o sanatório de "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, onde tudo é relativo, inclusive o tempo. Só quem está lá entende o significado e o peso dos pormenores. Poucos políticos mergulham nesse universo com profundidade.
Paulo Kawahira tem loja na avenida Mateo Bei, no distrito de São Mateus. Há 20 anos não consegue entrar na legalidade por causa da burocracia, jogo de empurra e leis conflitantes. Patrick, dono de restaurante, obteve o auto de licença em novembro de 2012, com horário ilimitado. Tomou multa doída de R$ 34 mil, via Lei do Psiu, por ter avançado no horário. "Pode ou não pode?", reagiu com ironia.
Já tivemos 13 anistias. Elas surgem a pretexto de ajudar os que precisam trabalhar, mas, na prática, quem sai ganhando são os loteadores clandestinos e os locadores de imóveis irregulares. Os corretores da ilegalidade. A melhora para o usuário é fugaz.
Desde 1930 é assim. São Paulo foi cidade pobre e provinciana até 1880. Não gozou o curto ciclo do pau-brasil. Ficou de fora do primeiro ciclo da cana-de-açúcar e não se beneficiou do ciclo do ouro. Os bandeirantes deram nome e fama ao Estado, mas não riqueza à cidade. Foi o café que nos tirou do ostracismo econômico. Imigrantes italianos, logo depois japoneses.
O crescimento impulsionou a industrialização. Café e indústria iniciaram o salto para a metrópole cosmopolita. Em 1931, no 1º Congresso de Habitação, o prefeito Luiz Ignácio de Anhaia Melo, professor da Poli e fundador da FAU, alertava: "A cidade clandestina que crescia já era maior do que a cidade oficial". Está em "Periferia: Loteamentos Ilegais e Formas de Crescimento Urbano", de Marta Grostein, professora da FAU. Anhaia Melo denunciava a comercialização de empreendimentos produzidos a partir de ilegalidades, resultando em espaços sem qualidade urbanística.
O estudo de Grostein registra que o padre Lebret, economista, expõe o fio condutor da urbanização: "Convergiam para o dinamismo da cidade os principais interesses financeiros, comerciais e industriais". De 1940 a 1960, a população cresceu 171% na cidade central e 364% na periferia.
São Paulo é beneficiária e vítima do seu progresso. A origem é o modelo português de urbanizar na base do improviso, diferentemente do planejado e reticulado sistema espanhol, com grandes avenidas centrais. Seguia os interesses econômicos, sempre a reboque do prejuízo causado pelo assentamento de "qualquer jeito" dos que serviam a tais interesses. Era a força da grana que ergue e destrói coisas belas. Isso levou à casa própria autoconstruída, ao "puxadinho", ao churrasco na laje, feitos por conta própria. Com ajuda de vizinhos. Desconhecendo as normas técnicas.
Hoje, boa parte está fora de ordem: calçadas, o que gera 140 mil acidentes por ano, comércio pirata, pequeno comércio, casas em áreas de risco, ruas fechadas indevidamente, bairros em loteamentos clandestinos, como o Jardim Novo Horizonte, na zona leste, as 900 mil pessoas na região de mananciais, os prédios no centro sem posse legal, impedindo a revitalização.
CIDADE DESEJADA
A questão é: temos leis demais ou o descumprimento põe a todos em risco? É um misto. A nova postergação é a oportunidade de arrumar a casa. À cidade irregular se juntam a cidade do medo, a cidade da imobilidade, a cidade descuidada. Elas nos separam da cidade desejada.
São Paulo tem problemas gigantescos e propostas de solução tímidas. Nada na dimensão do que já fizeram outras metrópoles. Nas campanhas eleitorais, as propostas são idênticas. Sem fonte clara de receita, insistem no viés aritmético: mais x escolas, y creches, n hospitais. Enquanto há 70% de leitos ociosos em hospitais acima de 150 leitos na Grande São Paulo, reclama-se da falta deles. Os planos de metas são pobres em projetos estruturais que realmente transformem o jeito de a cidade funcionar, como levar de fato emprego à periferia com a economia criativa. Ou mudar o transporte de lixo, que desloca 500 caminhões/dia, num "lixotour", em vez de ser escoado por nossos rios e canais.
São Paulo é quase uma ilha. Mesmo com toda a irregularidade e todo o descuido, a cidade produz 12% do PIB do Brasil. A Grande São Paulo, 20%. Não há mudança sem sonho. Não há transformação urbana sem utopia. Mas mudar requer mais do que planos. Exige atitude. Faltam metas que garantam a manutenção de bens e serviços. A ênfase é sempre na obra e não na permanência do serviço. Manter um hospital tem quase o mesmo custo anual que a construção.
As 13 anistias da história se preocuparam em perdoar e conceder prazos. Sem criarem uma forma prática para que o cidadão irregular possa sair da contramão. Anistiar é fácil. Sair do desvio é que são elas. Mas não há só gente boa sendo massacrada pelo poder público. Estima-se, nesses casos, que 30% estejam ilegais consciente e deliberadamente; 40% por conta da torturante burocracia ou por falta de recursos financeiros para executar os procedimentos necessários. Em geral, 30% estão legais.
Não existe um roteiro-padrão para reverter o cenário. Todavia, é indiscutível ser preciso tornar a lei simples de entender, fácil de aplicar e de justa medida. Há modelos de recuperação, cada um com objetivos e meios específicos: a do Harlem, em Nova York, que transformou galpões abandonados em lofts e restaurantes, afastando a criminalidade; a da zona portuária de Barcelona, em 1992, acabando com a prostituição e a terra de ninguém; e a de Stratford, no leste de Londres, em 2012.
Caio Prado Jr., em "Evolução Política do Brasil", escreveu: "A formação de um grande centro como São Paulo determinou transformações na própria estrutura orgânica do país. Elas trazem tom de vida novo, que o Brasil não conheceu no passado, e desconhece ainda na maior parte do seu território". Quer dizer: exige plano próprio. Mas pode incorporar experiências.
Sair da ilegalidade requer um plano que elimine as normas inócuas ou criadas para vender facilidades e que corrija, de fato, o imprescindível. Nos moldes dos planos habitacionais, precisa de financiamento, e cabe subsidiar os mais carentes. Como no projeto Casa Paulista, que alinha Estado, autor, com Prefeitura e União, e reformula os conceitos vigentes.
O projeto elimina os modelos habitacionais do tipo "BNH", mares de prédios e "cidades medievais" escondidos atrás de muros. É mais barato financiar a regularização do que bancar as consequências. Com o compromisso inegociável de, após a regularização, permanecerem dentro da lei. É essencial que haja contrapartidas.
Esperar o novo Plano Diretor é agravar o problema. Não é legal viver ilegal. Anhaia Melo, o prefeito que questionou o despertar das ilegalidades, em 1975, virou nome de avenida em Vila Prudente. Ela vive inundada, congestionada e abriga o maior centro de venda de carros usados. É quase um caos ao cair da tarde. A ilegalidade em São Paulo só aumentou. Até lojas da Anhaia Melo foram relacionadas a desmanches fora da lei.
São Paulo tem uma escolha: ou faz do novo adiamento outro empurrão com a barriga ou dá resposta definitiva à velha questão do professor Anhaia Melo.
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