ARQUIVO ABERTO
O MAPA DA CULTURA
Derrida encantava pelo sentido da acolhida em relação aos pesquisadores e alunos com projetos relevantes. Lembro-me de indicar uma excelente bibliografia e depois discutir comigo alguns pontos de minha pesquisa. Isso me levou a escrever uma tese de doutorado sobre ele, que se tornaria o livro "Derrida e a Literatura" (EdUFF).
Num auditório do bulevar Raspail, impressionavam suas densas reflexões a partir de autores complexos como Kant e Heidegger, com citações em alemão e uma capacidade comunicativa rara. A plateia era composta por estudiosos que o acompanhavam havia décadas, por alunos recentes e também por pesquisadores-visitantes, que iam assistir ao último dos grandes da geração de Foucault, Deleuze e Barthes.
Quando retornei ao Brasil, sempre que ia a Paris em razão de algum trabalho o encontrava em seu escritório na Maison de l'Homme e se reforçava a impressão da hospitalidade, por "amizade de pensamento", como gostava de dizer.
Antes de Derrida fazer sua segunda visita ao nosso país, em 2001, fui entrevistá-lo no café do hotel Lutetia, em Paris, para a Folha. A transcrição da longuíssima gravação não foi nada fácil, pois não podia imaginar os sons ao redor: conversas, gritos de crianças, ruídos amplificados. Isso me custou algumas noites de sono, a fim de preservar a íntegra de uma fala que parecia previamente escrita, embora Derrida desconhecesse o conteúdo de minhas perguntas.
Em 2004, reencontrei-o já bastante debilitado no aeroporto do Galeão, na última viagem de sua vida, para realizar a conferência de abertura do colóquio internacional sobre sua obra, que organizei numa parceria entre o Consulado da França no Rio e a Universidade Federal de Juiz de Fora. Ele me abraçou e disse sorrindo: "É a viagem mais improvável que já fiz". Menos de dois meses depois, o pensador da desconstrução partiria em definitivo, legando uma obra de cerca de 80 volumes, um terço da qual já traduzido entre nós.
Finalmente, em 2007, no meio de um estágio de pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim, fui a Paris em busca de um seminário que Derrida desenvolvera sobre "Nacionalidades e Nacionalismos Filosóficos", fundamental para as questões políticas sobre as quais então me debruçava.
Sua mulher, Marguerite, psicanalista e tradutora do russo, me convidou então a procurar na biblioteca uma cópia do texto que desejava. Seus arquivos estavam sendo organizados a fim de seguirem para o Instituto Memórias da Edição Contemporânea, havia caixas de papelão em toda parte e as pastas no computador não estavam todas devidamente identificadas.
Resultado: tivemos que procurar em toda a casa uma versão impressa do seminário, finalmente encontrada. Mas naquele momento ocorria uma das inúmeras greves nos transportes franceses, e Derrida, ainda nos anos 60, optara por morar em Ris-Orangis, longe do tumulto parisiense. Assim, por falta de trem e metrô, acabei dormindo num confortável anexo da biblioteca.
Foi uma noite insone, em que eu abria alguns dos volumes de Freud ou de Nietzsche e encontrava ali sublinhados os trechos que eu bem reconhecia nos textos assinados por Derrida. As estantes contavam com imagens em cartões-postais de escritores e filósofos, para bem identificar o lugar de cada um: Hegel, Marx, Benjamin.
Será preciso um dia fazer uma abordagem do pensamento do autor a partir de seus rabiscos, anotações e inúmeros rastros que deixou na margem dos livros. Tal estudo deveria, no caso de Derrida, se chamar, com efeito, Marginália, ele que tantas vezes se colocou às margens das instituições e correntes hegemônicas.
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