domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cartas nada ridículas -Mozahir Salomão Bruck

Livro com a correspondência completa entre Fernando Pessoa e a namorada, Ofélia Queirós, é lançado em Portugal e revela história de amor intensa, marcada pela personalidade do poeta


Mozahir Salomão Bruck

Estado de Minas: 23/02/2013 

Desde o primeiro bilhete trocado em 1919, quando Ofélia Queirós foi trabalhar no mesmo escritório de Fernando Pessoa, em Lisboa, teve início um romance epistolar repleto de momentos de ternura, mas também de amargura; de uma paixão erotizada, mas também de tédio e, em alguns momentos, de desdém; de promessa e de entrega, mas também de cobrança e de culpa. Os leitores já conheciam muitas dessas mensagens, divulgadas anteriormente em publicações em separado: Cartas de amor de Fernando Pessoa, lançado em 1978, e Cartas de amor de Ofélia a Fernando Pessoa, de 1996. A novidade agora é que as cartas de amor entre Ofélia e Pessoa foram publicadas em ordem cronológica e em edição conjunta, assinada por Manuela Parreira da Silva, com chancela da Assírio & Alvim, da Porto Editora, lançado no final de 2012.

Como consta da nota introdutória do livro Cartas de amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queirós, uma edição conjunta “é a forma mais adequada de dar a ler uma correspondência, que pressupõe sempre um diálogo, uma interação, a existência concreta de dois interlocutores. Cada carta é, em si mesma, ou a resposta a outra carta ou pretexto para ela’’. E alerta ainda o prefaciador que até mesmo quando o destinatário opta por não responder, de algum modo, “o seu silêncio se inscreve na carta seguinte. Assim, uma relação amorosa sustentada epistolarmente, como a de Pessoa e Ofélia, só é, na verdade, compreensível quando os dois discursos se cruzam e mutuamente se refletem”.

A coletânea traz 185 documentos – datados e em ordem cronológica –, cujos conteúdos foram trocados por meio de cartas, postais e telegramas. O relacionamento epistolar entre os amantes era intenso. Nos tempos da internet e incontáveis dispositivos de conexão, para quem acredita que o e-mail e o Messenger  são os responsáveis pela troca compulsiva de mensagens,  cabe saber que, em 1920, Pessoa e Ofélia chegavam a trocar cinco, sete, nove mensagens – geralmente cartas – em apenas um dia e que eram entregues aos correspondentes pelo carteiro (que fazia seu serviço de bicicleta) ou por mensageiros particulares, como os grumetes. Uma solução perfeita para as emergências e, digamos assim, para trâmites mais “reservados”.

A firma em que Fernando Pessoa e Ofélia se conheceram funcionava na Baixa, na Rua da Assunção, 42, um edifício localizado entre a Rua da Prata e a Rua dos Correeiros. Entre os dois se conhecerem e tornarem-se amigos e, rapidamente, namorados, foi tudo muito rápido. Na verdade, a convivência no ambiente de trabalho durou pouco. Logo Ofélia conseguiu logo outro emprego e isso só fez com que a troca de cartas se intensificasse.

Mesmo trabalhando em locais distintos, Pessoa e Ofélia se viam com frequência, mas sempre muito rapidamente. As juras de amor – cortejos, trocas de carinhos, cobranças, promessas – se davam por cartas. Se para uma “moça de família”, para os padrões da época, já não era aceitável andar sozinha pelas ruas, imagine-se o que era, quase que diariamente, deambular pela Baixa, com um homem 12 anos mais velho e com o qual não existia nenhum relacionamento sério e, pior ainda, sem o consentimento da família. E assim foi toda a primeira fase do namoro, que durou entre os meses de março e novembro de 1920.

Eram sucessivas cartas, sendo que boa parte delas em tom de cobrança por parte de Ofélia. A reação a isso por parte de Pessoa era de impaciência – seja em função dessa quantidade de cartas, mas especialmente, em função da enorme pressão que lhe fazia a gaja para que formalizassem a relação. Mas havia também nas mensagens muita troca de carinho e expressão de desejo entre os namorados, em que se pode destacar também uma mútua preocupação com a saúde de cada um. Ofélia referia-se a Fernando Pessoa como Fernandinho, Nininho, Docinho, Bebé, Bebezinho, entre outros. Para Fernando, era a Ofelinha, a Pequenina, o Anjinho. Os dois amantes se chamavam mutuamente de (meu/minha) Bebezinho, (meu/minha) Íbis - um dos heteronômios de Fernando. “Íbis do Íbis da Íbis”, brincava Ofélia

Há uma outra constante na troca de mensagens: uma Ofélia mais do que apaixonada e, pode-se assim dizer, obcecada e obsessiva, insistindo para que Fernando Pessoa não apenas lhe demonstrasse mais carinho, mas se dedicasse de forma integral e verdadeira ao relacionamento. Do outro lado, um tangenciado Pessoa que descartava – mas talvez não de modo tão assertivo – um relacionamento mais próximo e mais sério. Assim como os conteúdos das mensagens, os números acerca das cartas confirmam essa perspectiva: na primeira fase do namoro entre março e novembro de 1920, Fernando Pessoa enviou 38 cartas para sua Bebé, e 12 na segunda fase, entre setembro de 1929 e 11 de janeiro de 1930. Já Ofélia escreveu, nos dois períodos de namoro, 129 mensagens.

Ofélia assumia-se quase dependente dessa correspondência, como afirma em mensagem enviada em 23 de março de 1920: “Eu tenho que escrever-te alguma coisinha porque não posso passar já sem te escrever qualquer coisinha”. Já a intensidade da correspondência gerou, por mais de uma vez, a reação do contido e liminar Pessoa, como neste trecho de uma das cartas : “Não me conformo com a ideia de escrever; queria falar-te, ter-te sempre ao pé de mim, não ser necessário mandar-te cartas. Não te admires de certo laconismo nas minhas cartas”.

Mas se a paixão existente entre Pessoa e Ofélia explode nas cartas, nelas fica evidente também que seus projetos de vida eram muitos distintos. Enquanto Ofélia sonhava se casar e ter filhos, “muitos nininhos” – expectativa típica das moças de sua época, cujo grande medo era exatamente o celibato (“ficarei eu para titia?”, provocara Ofélia em uma das cartas) –, um dos grandes temores de Pessoa parecia ser exatamente o oposto, ou seja, o de constituir uma família. Não se pode, ao mesmo tempo, desconsiderar as sinalizações de Fernando Pessoa de que o poeta queria mesmo era dedicar sua vida à literatura, como na carta de 29 de setembro de 1929, já na segunda fase do namoro: “De resto, minha vida gira em torno de minha obra literária - boa ou má, que seja ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundário. É preciso que todos, que lidam comigo, se convençam de que sou assim, e que exigir-me os sentimentos, aliás muito dignos de um homem vulgar e banal é como exigir-me que tenha olhos azuis e cabelo louro. [...] Gosto muito - muito mesmo - da Ofelinha. Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber, se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento”.

Duas fases

Se na primeira fase do namoro Ofélia insistiu o quanto pôde para que Pessoa o formalizasse, já na segunda fase da relação (passados nove anos, e com Ofélia a essa altura já com quase 30 anos – uma idade em que, para a expectativa da sociedade portuguesa à época, as mulheres já deveriam ser bem casadas e boas mães), ela chega a abrir mão de convenções, normas e imposições morais para que ela e Fernando Pessoa pudessem enfim viver juntos. Depois de, por seguidas cartas, sugerir e mesmo implorar-lhe para que se casassem (e a essa altura Pessoa já não respondia as cartas e nem sequer mais lhe telefonava), Ofélia faz um último apelo desesperado, em carta de 29 de março de 1931: “Se o Nininho dispõe do dinheiro indispensável para se viver com as maiores economias que sejam necessárias fazer-se, porque não me leva para junto de si, que é a única ambição que tenho?! (...) Ó meu amor, leve-me para junto de si o mais depressa possível, porque eu não posso resistir à vontade que tenho de o beijar, de o acariciar, anseio de tê-lo junto de mim, cuidar de si, fazer parte de sua vida”.   

Foi a última carta em tom apaixonado escrita por Ofélia. Depois, apenas trocaram telegramas em épocas de aniversário dele – entre 1932 e 1935, ano da morte de Fernando Pessoa.

Na biografia que fez sobre o poeta, Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, José P. Cavalcanti Filho coloca em questão o real motivo da morte do escritor, desqualificando também a versão mais corrente, de que teria sido de cirrose hepática (associação ao excessivo consumo de álcool). Hoje, especialistas – a partir dos relatos de sintomas e da ficha médica – acreditam que tenha sido uma pancreatite. Pessoa teve os primeiros incômodos no dia 26 de novembro de 1935. O quadro se agravou no dia 29, quando foi levado para o Hospital de São Luiz dos Franceses. Os relatos dão conta de que antes de adormecer pediu um papel e um lápis e escreveu sua última frase, em inglês: ‘‘I know not what tomorrow will bring’’ (‘‘Eu não sei o que o amanhã trará’’). No dia seguinte, Pessoa morreu por volta das 20h.

Ofélia, que tanto quis fazer-se presente na vida do poeta, teria conseguido, pelo menos, dele se despedir e com ele estar, finalmente, a sós. Sabendo da relação de muitos anos que os dois mantinham, as freiras do hospital lhe telefonaram permitindo que se despedisse de Fernando, longe da vista de outras pessoas. Ofelinha seguiu imediatamente para o hospital e como amigos e parentes de Pessoa já haviam se ido para tomar providências para o velório e enterro, pôde ficar com ele no pequeno e mal iluminado quarto. Quando o dia começou a clarear, as mesmas freiras pediram que ela se fosse, pois os familiares poderiam chegar a qualquer momento. Certamente Ofélia nunca havia passado tantas horas ao lado de Pessoa. Segundo o biógrafo José Paulo Cavalcanti Filho, o relato sobre esse velório tão privativo foi feito ao jornalista Ronald de Carvalho, pela própria Ofélia, que lhe pediu que a história fosse mantida em sigilo até sua morte. Ofélia morreu em 1991, aos 91 anos. Casou-se em 1938, três anos depois da morte de Fernando Pessoa. Teve três filhos.

Já perto de um mês antes de morrer, em 21 de outubro, Pessoa escrevera o conhecido poema “Todas as cartas de amor são ridículas”.  Coisas que, certamente, não coadunavam com sua “vida de pensamento”.

* Mozahir Salomão Bruck é professor da PUC Minas.

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