Oldsmobile - Régis Bonvicino

folha de são paulo

IMAGINAÇÃO

prosa, poesia e tradução

Oldsmobile

RÉGIS BONVICINOUm saco plástico de lixo, vazio, pende
da tipuana
tarde de verão
a sucateira,
bronzeando-se na sombra,
põe a mão na cabeça
um mendigo negro de cócoras
na porta da loja fechada
de pronto
responde ao sinal de positivo
o capim brota
num dos buracos da calçada
o capim prospera
um mendigo surdo fala por grunhidos,
simula um assalto à mão armada
na esquina
o mendigo surdo dá cambalhotas
em duplo sentido
um casal troca de calçada
para evitar outro mendigo
um mendigo varre
as folhas da calçada da igreja
ansioso
à espera da missa
pelos trocados do ano novo
um mendigo dorme
céu azul
sob o neon de um caixa eletrônico
exatamente onde, há décadas,
militantes sequestraram o cônsul do Japão
chegando em casa num oldsmobile
logo depois trocado vivo
com os militares
por presos políticos
"não há futuro mas apenas tempo"
diz o anúncio maluco de um relógio,
ninguém me falou desses dias adiados
de granito e mármore
um maciço de miosótis
rompe as grades do parque.
SOBRE O TEXTO "Oldsmobile" integrará novo livro do poeta, tradutor e crítico literário Régis Bonvicino, "Estado Crítico", cuja publicação está prevista para este ano, por editora a definir.