Estado de Minas: 23/02/2013
Houve um tempo em que
tentei fazer de mim mesma um exército, ao qual deveria servir.
Construía cada atitude, cada linha de pensamento como tarefas que
deveria realizar com o mais rígido controle da razão possível. Procurava
me disciplinar pensando nas palavras de Borges, sobretudo de
Shakespeare. Dormir sem sonhar. A minha meta era o esquecer. Tentei
muitas vezes me disciplinar e alcançar o objetivo através da arte, do
meu trabalho. Mas arte pra quê? Mas o teatro havia se tornado tão cruel
para mim como a peste descrita por Artaud. Teatro e vida são a mesma
coisa. A alma do ser humano só pode ser apalpada se houver a presença de
um ator diante de uma plateia. Mas alma é o quê? Sabe-se que o teatro
se baseia na mentira pactuada e não se pode ignorar que esse pacto é uma
bela tentativa de encontro com a verdade. Mas qual verdade? O material
humano, indispensável para o exercício do ofício, estava ácido demais
pra mim e me provocava aftas. Então, doer pra quê?
Passei a me espelhar nos loucos para apreender mais sobre a realidade cruel. Gastava a maior parte do tempo acordada para ter o domínio de todas as coisas, e o principal: o domínio de não sonhar. Em vigília, fascinada pela loucura, talvez pudesse alcançar a verdadeira verdade absoluta. Como se, assim, eu pudesse controlar todas as possibilidades de angústia e sofrimento que me atormentavam a maior parte do meu tempo. E, assim, também acabava por esgotarem-se as possibilidades de prazer cuja única fonte continuava na minha boca, ao tirar, com minhas unhas, pelinha por pelinha dos meus lábios constatando, através do gosto de sangue, uma tentativa de arrancá-lo. Não falar mais. Não fumar mais. Não beber mais. Não beijar mais. Comer jamais. Fazia lembrar a pretensão do cocainômano. Esquecer a fome, o sono, a falta, o desejo. Frígida da vida. Estéril. Nada. Morta. Pensava que esse exército do esquecimento estava me disciplinando para nascer de novo.
Arte para quê, quando se tem a loucura?
No entanto, quando olhava para as minhas cadelas, pensava em como são felizes, amadas e amáveis, sem responsabilidades, sem as questões do ser. Elas já estão. Preferia ser uma delas. Se possível poderia renascer como um pombo, só para ter o prazer de voar, como já fiz em bons sonhos que tive na minha infância. Mas como? Sonhos... Só me restava... ser eu?? Arte pra quê?
Transformar o exército do esquecimento em jardim, onde meu filho poderia conhecer a realidade do mundo e brincar comigo? Talvez.
Pra voltar à vida, peguei carona nessas apneias do coração retomando as rédeas dos meus cavalos antes dominados pelo exército do esquecimento.
O problema não era com a arte, com o teatro. Com eles ia tudo bem. A questão era estar disposta a dedicar-se tanto tempo àquilo que não é valor para o sistema. O artista, tão supérfluo, tão pobrinho, tão apaixonado, tão cheio de ilusões, segue o seu curso e alimenta-se de algo inexplicável que vem dos sonhos, da loucura, dos extremos de tentar compreender seu lugar no mundo – só quem verdadeiramente conhece o ofício entende essa devoção.
Arte pra quê?
Arte para quê?
Arte para quê? Vamos, me digam! Quantas vezes essa pergunta foi feita e mal respondida? Quantas vezes deixamos de ouvir uma resposta? Sintam-se à vontade para responder a pergunta, não deveria haver razões para constrangimentos ou para se questionar essa função. Mas essa é a função que cabe à arte e a nós, artistas e sociedade, que deveríamos sempre lembrar e re-construir esta função. Arte pra quê?
Muitos como eu se avolumam às margens e viram cada vez mais maiorias solitárias.
Arte pra quê?
Aceito minha posição marginal!
Arte pra quê?
Se o sistema é um rio onde não posso estar, que a vida não deixe de correr porque pertenço às margens.
Arte pra quê?
O imaginário não pertence ao sistema. Doce ilusão! Arte pra quê?
Arte pra quê?
Eu me transformo para algo que me aguarda e desconheço.
Teatro pra quê?
Foi necessário percorrer tanto caminho para reconhecer que o ideal não passa do ideal.
Arte para quê?
Em vários sonhos que tenho, quando preciso me posicionar, ou me defender, acreditando na justiça e na sua balança, perco a voz e a habilidade de falar. Esse é um tipo de sonho que me persegue e que tenho tido com frequência. Quando acordo, me sinto aliviada por ter recuperado minha voz e fala. E sempre me pergunto: como fazem os que não as têm? Não seria essa uma das funções do teatro ou da arte? Dar voz, dar lugar, se fazer ouvir?
Eu – assim como tantos outros artistas – me preencho de sonhos incompletos, de fragmentos do cotidiano, de falas, de olhares, de instantes, do subjetivo para a criação. O homem e sua fonte riquíssima e inesgotável de contradições. O meu ofício prescinde vocação para imaginar, para ser incoerente, para me apaixonar. Se não for possível multiplicar as facetas, as perspectivas, as possibilidades, não há sentido em produzir arte, não há graça em viver a vida. Que mania de achar que há regras para tudo, que não há deslocamentos, que tudo tem um devido lugar. O que é devido? Pare de se desculpar e simplesmente aprecie, observe, deixe o caos se instalar docemente. Permita que o sublime tome as proporções do grotesco. Não há controle na criação, não há controle na vida. Há fluxo, movimento, devires. Persigo a imperfeição, persigo a humanidade.
Teatro para quê? Arte pra quê?
Respondam quando e como puderem e nunca se esqueçam de se perguntar.
Olhos cor do mar
Este texto foi escrito para a performance idealizada e realizada por Cecília Bizzotto, a Ciça, na Casa UNA, em 19 de setembro de 2012. Tudo começou quando ela me pediu alguns escritos para um documentário que pretendia fazer. Encaminhei vários textos que havia feito há alguns anos – e nunca tinha tido coragem de mostrar a ninguém – e que tratavam de questões sobre o ofício do artista.
Ela gostou do material e isso me deixou muito entusiasmada, porque a opinião dela era sem dúvida muito cara para mim. Ciça acrescentou a esses pensamentos soltos uma bela introdução em que conta sua história como atriz e sua relação com o ofício, e costurou tudo em torno da questão que sempre a inquietou: “Teatro pra quê?”. Terminado o texto, trocamos alguns e-mails e nos encontramos para pensar a melhor forma de dizê-lo durante a performance. Foram meus últimos encontros com Ciça.
Não foi difícil gostar dela. Reunia muitas qualidades. E como aprendi com ela! Essa joia rara de olhos cor do mar, inquietos, era uma artista generosa, criativa e atrevida, que conseguia levar para a cena paixão, leveza e densidade. Sem dúvida nenhuma, a morte de Ciça marcou a história de nossa cidade e deixará uma lacuna na cena mineira.
Beatriz França é atriz, jornalista e integrante da Companhia Lúdica dos Atores
Para dar voz às pessoas
Cecília Bizzotto era atriz e performer, cujo trabalho artístico se desenvolveu em formas associativas de produção e voltado para explorar as realidades produzidas pelos sonhos, pela loucura e pela própria arte. Foi sócia-fundadora da Companhia Lúdica dos Atores, grupo de teatro que, desde 2003, se dedicou a explorar a característica popular da obra de Shakespeare. Cecília trabalhou de 2005 a 2009 como professora de interpretação e preparação corporal, ministrando oficinas pelo projeto Arena da Cultura.
A atriz desenvolveu projetos que buscavam estabelecer conexões entre a linguagem audiovisual e teatral, para dar voz ao público, aos artistas e às comunidades. Foi professora de teatro no projeto Valores de Minas, em Belo Horizonte.
O exército do esquecimento é resultado de um projeto artístico intitulado Devir atriz/eu não passei nesse edital. Cecília concebeu, produziu e dirigiu o projeto, tendo como assistente de direção visual Carlosmagno Martins. Dele participaram as atrizes Beatriz França, Christina Fornacciari, Dayse Bellico e Samira Ávila.
* Cecília Bizzotto morreu aos 32 anos, baleada durante um assalto à sua casa, em BH, em outubro de 2012.
Passei a me espelhar nos loucos para apreender mais sobre a realidade cruel. Gastava a maior parte do tempo acordada para ter o domínio de todas as coisas, e o principal: o domínio de não sonhar. Em vigília, fascinada pela loucura, talvez pudesse alcançar a verdadeira verdade absoluta. Como se, assim, eu pudesse controlar todas as possibilidades de angústia e sofrimento que me atormentavam a maior parte do meu tempo. E, assim, também acabava por esgotarem-se as possibilidades de prazer cuja única fonte continuava na minha boca, ao tirar, com minhas unhas, pelinha por pelinha dos meus lábios constatando, através do gosto de sangue, uma tentativa de arrancá-lo. Não falar mais. Não fumar mais. Não beber mais. Não beijar mais. Comer jamais. Fazia lembrar a pretensão do cocainômano. Esquecer a fome, o sono, a falta, o desejo. Frígida da vida. Estéril. Nada. Morta. Pensava que esse exército do esquecimento estava me disciplinando para nascer de novo.
Arte para quê, quando se tem a loucura?
No entanto, quando olhava para as minhas cadelas, pensava em como são felizes, amadas e amáveis, sem responsabilidades, sem as questões do ser. Elas já estão. Preferia ser uma delas. Se possível poderia renascer como um pombo, só para ter o prazer de voar, como já fiz em bons sonhos que tive na minha infância. Mas como? Sonhos... Só me restava... ser eu?? Arte pra quê?
Transformar o exército do esquecimento em jardim, onde meu filho poderia conhecer a realidade do mundo e brincar comigo? Talvez.
Pra voltar à vida, peguei carona nessas apneias do coração retomando as rédeas dos meus cavalos antes dominados pelo exército do esquecimento.
O problema não era com a arte, com o teatro. Com eles ia tudo bem. A questão era estar disposta a dedicar-se tanto tempo àquilo que não é valor para o sistema. O artista, tão supérfluo, tão pobrinho, tão apaixonado, tão cheio de ilusões, segue o seu curso e alimenta-se de algo inexplicável que vem dos sonhos, da loucura, dos extremos de tentar compreender seu lugar no mundo – só quem verdadeiramente conhece o ofício entende essa devoção.
Arte pra quê?
Arte para quê?
Arte para quê? Vamos, me digam! Quantas vezes essa pergunta foi feita e mal respondida? Quantas vezes deixamos de ouvir uma resposta? Sintam-se à vontade para responder a pergunta, não deveria haver razões para constrangimentos ou para se questionar essa função. Mas essa é a função que cabe à arte e a nós, artistas e sociedade, que deveríamos sempre lembrar e re-construir esta função. Arte pra quê?
Muitos como eu se avolumam às margens e viram cada vez mais maiorias solitárias.
Arte pra quê?
Aceito minha posição marginal!
Arte pra quê?
Se o sistema é um rio onde não posso estar, que a vida não deixe de correr porque pertenço às margens.
Arte pra quê?
O imaginário não pertence ao sistema. Doce ilusão! Arte pra quê?
Arte pra quê?
Eu me transformo para algo que me aguarda e desconheço.
Teatro pra quê?
Foi necessário percorrer tanto caminho para reconhecer que o ideal não passa do ideal.
Arte para quê?
Em vários sonhos que tenho, quando preciso me posicionar, ou me defender, acreditando na justiça e na sua balança, perco a voz e a habilidade de falar. Esse é um tipo de sonho que me persegue e que tenho tido com frequência. Quando acordo, me sinto aliviada por ter recuperado minha voz e fala. E sempre me pergunto: como fazem os que não as têm? Não seria essa uma das funções do teatro ou da arte? Dar voz, dar lugar, se fazer ouvir?
Eu – assim como tantos outros artistas – me preencho de sonhos incompletos, de fragmentos do cotidiano, de falas, de olhares, de instantes, do subjetivo para a criação. O homem e sua fonte riquíssima e inesgotável de contradições. O meu ofício prescinde vocação para imaginar, para ser incoerente, para me apaixonar. Se não for possível multiplicar as facetas, as perspectivas, as possibilidades, não há sentido em produzir arte, não há graça em viver a vida. Que mania de achar que há regras para tudo, que não há deslocamentos, que tudo tem um devido lugar. O que é devido? Pare de se desculpar e simplesmente aprecie, observe, deixe o caos se instalar docemente. Permita que o sublime tome as proporções do grotesco. Não há controle na criação, não há controle na vida. Há fluxo, movimento, devires. Persigo a imperfeição, persigo a humanidade.
Teatro para quê? Arte pra quê?
Respondam quando e como puderem e nunca se esqueçam de se perguntar.
Olhos cor do mar
Este texto foi escrito para a performance idealizada e realizada por Cecília Bizzotto, a Ciça, na Casa UNA, em 19 de setembro de 2012. Tudo começou quando ela me pediu alguns escritos para um documentário que pretendia fazer. Encaminhei vários textos que havia feito há alguns anos – e nunca tinha tido coragem de mostrar a ninguém – e que tratavam de questões sobre o ofício do artista.
Ela gostou do material e isso me deixou muito entusiasmada, porque a opinião dela era sem dúvida muito cara para mim. Ciça acrescentou a esses pensamentos soltos uma bela introdução em que conta sua história como atriz e sua relação com o ofício, e costurou tudo em torno da questão que sempre a inquietou: “Teatro pra quê?”. Terminado o texto, trocamos alguns e-mails e nos encontramos para pensar a melhor forma de dizê-lo durante a performance. Foram meus últimos encontros com Ciça.
Não foi difícil gostar dela. Reunia muitas qualidades. E como aprendi com ela! Essa joia rara de olhos cor do mar, inquietos, era uma artista generosa, criativa e atrevida, que conseguia levar para a cena paixão, leveza e densidade. Sem dúvida nenhuma, a morte de Ciça marcou a história de nossa cidade e deixará uma lacuna na cena mineira.
Beatriz França é atriz, jornalista e integrante da Companhia Lúdica dos Atores
Para dar voz às pessoas
Cecília Bizzotto era atriz e performer, cujo trabalho artístico se desenvolveu em formas associativas de produção e voltado para explorar as realidades produzidas pelos sonhos, pela loucura e pela própria arte. Foi sócia-fundadora da Companhia Lúdica dos Atores, grupo de teatro que, desde 2003, se dedicou a explorar a característica popular da obra de Shakespeare. Cecília trabalhou de 2005 a 2009 como professora de interpretação e preparação corporal, ministrando oficinas pelo projeto Arena da Cultura.
A atriz desenvolveu projetos que buscavam estabelecer conexões entre a linguagem audiovisual e teatral, para dar voz ao público, aos artistas e às comunidades. Foi professora de teatro no projeto Valores de Minas, em Belo Horizonte.
O exército do esquecimento é resultado de um projeto artístico intitulado Devir atriz/eu não passei nesse edital. Cecília concebeu, produziu e dirigiu o projeto, tendo como assistente de direção visual Carlosmagno Martins. Dele participaram as atrizes Beatriz França, Christina Fornacciari, Dayse Bellico e Samira Ávila.
* Cecília Bizzotto morreu aos 32 anos, baleada durante um assalto à sua casa, em BH, em outubro de 2012.
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