O GLOBO - 24/02/2013
Emmanuelle Riva não caiu em nenhuma das armadilhas da idade. Se, como já disse Mark Twain, rugas deveriam indicar apenas onde houve riso, no caso da aniversariante de hoje elas indicam onde houve e onde ainda há vida
Quando pisar no tapete vermelho
de Holywood, esta
noite, a francesa Emmanuelle
Riva merece eclipsar qualquer
concorrente. Não como favorita
ao prêmio de Melhor Atriz pela atuação
no perturbador filme “Amor”, de
Michael Haneke. É numa categoria
maior do que a de atriz: a de mulher.
Uma mulher que hoje completa 86
anos (tinha, portanto, 85 quando desempenhou
o estupendo papel) e cuja
beleza desconcerta, por deixar intactas
as marcas da vida.
De quebra, ela é capaz de arrasar
também no quesito elegância, embora
isso já seja de regra. Salvo surpresas,
costuma ser abissal a distância
entre o que adorna a silhueta de uma
europeia e o que é envergado por atrizes
americanas.
Emmanuelle Riva nasceu na região
de Vosges, Nordeste da França, no
mesmo ano da fundação da Academia
de Artes e Ciências Cinematográficas,
em Los Angeles. Veio a um
mundo do qual poucos bípedes ainda
guardam lembrança viva — em 1927,
Johnny Weissmuller batia um recorde
de natação atrás do outro, Charles
Lindbergh atravessou o Atlântico em
voo solo, Trotsky foi expulso do Partido
Comunista soviético e Fritz Lang
estreava o clássico “Metrópolis”.
Filha de família modesta, trabalhou
como costureira até aportar em Paris
para tentar a carreira de atriz. Irrompeu
com estrondo no mundo do cinema
em 1959, quase do nada, aos 32
anos. Como a heroína sem nome e
presença sublime de “Hiroshima Meu
Amor”, de Alain Resnais, cativou instantaneamente
o público. No papel
de uma atriz que está em Hiroshima e
vive um amor fragmentado com um
japonês, assombrou de imediato uma
geração inteira de cinéfilos. E o filme,
com roteiro de Marguerite Duras sobre
lembranças e esquecimento,
abriu caminho para a Nouvelle Vague
francesa. Foi considerado pelo diretor
Eric Rohmer como “o primeiro filme
moderno desde o fim do cinema
mudo”.
O austríaco Michael Haneke, à época
um rapazote de 17 anos, ficara impactado.
Não só ele. Difícil não lembrar da
dicção inimitável da atriz naquele filme
— a cadência quase hipnótica de frases
curtas repetidas à exaustão, formando
quase um poema concreto. “Fiquei fissurado”,
relembra o diretor de “Amor”,
“mas a perdi de vista”.
Não que Emmanuelle tivesse se escondido
do mundo pelos 50 anos seguintes.
Filmou esparsamente, com
hiatos de 10, às vezes 20 anos, selecionando
a dedo diretores e roteiros de
seu gosto. Desempenhou papéis pouco
convencionais com inteligência
despretensiosa. Nunca fez filmes comerciais.
À medida em que começaram
a escassear papéis para mulheres
de meia-idade, bandeou-se com encanto
para o teatro. “Como recusei alguns
papéis, pararam de me chamar.
E assim você forma um vazio, acaba
esquecida”, relembrou em entrevista
recente. Mas nunca deixou de ser um
talismã bem guardado do cinema
francês.
Ao ler o roteiro que Haneke lhe fizera
chegar, Emmanuelle Riva acendeu.
Foi atraída pelo olhar nada sentimental
do texto sobre a velhice e aceitou
submeter-se a um teste de elenco.
Não teve para mais ninguém. Segundo
contam o diretor e a atriz, bastou
uma cena e ambos souberam que o
papel era dela. E assim, quase sem
avisar, a inconstante jovem amante
de Hiroshima reaparece em “Amor”
como uma octogenária em declínio.
Pela segunda vez, ilumina a tela de
forma inesquecível.
Na vida real, a atriz vive num ambiente
não tão diferente do retratado no
filme — o mesmo apartamento parisiense
que ocupa há 50 anos. Sua vida
foi construída em torno de livros,
amigos e fotografia. Não tem filhos,
nunca casou e seu último companheiro
morreu há quatorze anos. Indagada
pelo semanário britânico Observer
se prefere ser chamada de
“Mademoiselle”, como Catherine Deneuve
(69 anos) e Jeanne Moreau
(85), escolheu “Madame”. “Acho mais
apropriado e charmoso”, explicou.
Emmanuelle Riva não caiu em nenhuma
das armadilhas da idade. Se,
como já disse Mark Twain, rugas deveriam
indicar apenas onde houve riso,
no caso da aniversariante de hoje elas
indicam onde houve e onde ainda há
vida. Percorreu com norte próprio a
passagem do tempo sem romantizar a
velhice como “melhor idade”. Deixa o
figurino de vovó moderna que faz parapeito
e asa-delta para suas conterrâneas.
E acompanha com curiosidade a
obsessão por saúde e longevidade, visível
num passar de olhos por qualquer
banca de jornal.
“Vou gostar se ainda me chamarem
para atuar mais uma vez. Mas se não
chamarem, não vou me aborrecer.
Continuo viva e gosto dessa sensação.
Acho que vou gostar da vida até a
morte”, explicou no ano passado,
quando “Amor” ganhou a Palma de
Ouro em Cannes. Em Los Angeles, esta
noite, ela será a atriz mais velha já
indicada pela Academia. Uma linda
mulher, a cada nova geração
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