domingo, 24 de fevereiro de 2013

Caminhos da fé verdadeira - Ian McEwan

folha de são paulo

Apostasia ficcional
IAN MCEWAN
TRADUÇÃO CAETANO W. GALINDOComo um clérigo do fim da era vitoriana que se debate, no escuro, com suas Dúvidas, tenho momentos em que minha fé na ficção vacila, até chegar à beira de um colapso. Eu me vejo perguntando: 'Será que eu sou mesmo um fiel?'. E depois: 'Será que algum dia fui?'. As primeiras a cair são as narrativas desconjuntadas e distorcidas da ficção experimental. Ach fazer o quê? Depois, o milagre da concepção virginal do realismo fantástico. Quanto a este, porém, eu sempre fui meio recalcitrante. É quando as águas geladas do ceticismo começam a subir em volta do próprio realismo que eu sei que minha longa noite teve início.
A empresa toda se vê privada de sentido. Romances? Eu não sei como ou quando suspender minha descrença. O que um Henry imaginário disse a uma Sue inexistente, a infância solitária de Henry, sua guerra, seu divórcio, seu êxtase e sua luta com a verdade e o quanto ele é um espelho de seus tempos -eu não acredito em uma só palavra; nem no artifício enferrujado de fingir que o clima tem alguma coisa a ver com o estado de espírito de Henry nem no artifício enferrujado do fingimento.
Quando o deus da ficção deserta você, tudo tem que ser abandonado. A igreja forrada de livros e o púlpito com microfone, a respeitosa congregação, o catecismo do entrevistador, confissões disfarçadas de perguntas, a fila de suplicantes em busca do poder curativo de um autógrafo, a bênção ou a maldição do resenhista. Confesso que já estive naquele tipo de mesas-redondas em que, com outros fiéis, entoa-se a liturgia que diz que os humanos são fabuladores, que "não podemos viver" sem histórias. Você não pode viver, os padres sempre insinuam, sem eles. (Ah, mas podemos.) O meu coração em dúvida tropeça quando entro na seção de ficção de uma livraria e vejo as torres infindas sobre as mesas de lançamentos, as frases súplices na capa ("Ele a amava, mas ela seria capaz de ouvi-lo?"), as sinopses da trama na sobrecapa em seu sincero presente verbal: "Henry se liberta de seu casamento e embarca em uma série de loucas...".
É aí que eu acho que vou para o túmulo sem ler "Anna Kariênina" pela quinta vez, ou "Madame Bovary" pela quarta. Eu estou com 64 anos. Com sorte, posso ter ainda uns bons 20 anos de leitura pela frente. Quero saber do mundo! Mandem cosmologistas falando da criação do tempo, analistas do Holocausto, aquele filósofo que aderiu à neurociência, aquele matemático que consegue descrever a beleza dos números para um imbecil, o historiador das ascensões e quedas dos impérios, os fãs da Guerra Civil Inglesa.
Descontados alguns prazeres literários bem espaçados, o que é que eu vou saber quando terminar mais um romance, além do remorso ou do triunfo de Henry? Será que um romancista pode me fazer o favor de me explicar por que a Revolução Industrial começou, ou como o bóson de Higgs confere massa às partículas elementares, ou como evoluiu a moral, ou o que Salieri achava do jovem Schubert em seu coro? Se eu me importasse minimamente com os choramingos de um Henry, eu poderia ler uma das "Dream Songs" de John Berryman em menos de quatro minutos. E, com as 15 horas assim poupadas, me deter sobre algum relato jurídico (eventos reais!), uma cartilha tão boa quanto qualquer outra sobre a estranheza e a selvageria do coração humano.
Essa apostasia se infiltra pela larga brecha que separa o fim de um romance e o começo de outro. Não é um bloqueio, não é tanto uma longa noite quanto uma questão de profunda indiferença. A felicidade está em outros lugares. Podem se passar meses e aí vir uma mudança, um realinhamento. Começa com um cutucão. Um detalhe, uma frase ou uma oração podem promover o princípio de um retorno ao rebanho. Não precisa ser brilhante. Só tem que exsudar certo tipo de calor imaginativo.
Uma recente reversão à fé começou com a releitura de dois contos. (A brevidade é persuasiva.) O primeiro foi o discutidíssimo e elogiadíssimo "Sinais e Símbolos", de Nabokov. Um casal de velhos abatidos visita o filho mentalmente perturbado num hospital psiquiátrico, no dia do aniversário dele. A mãe não usa maquiagem. Em vez disso, "ela apresentou um rosto branco e nu à mesquinha luz dos dias da primavera". Tom perfeito e um ritmo que se enrosca em torno de um paradoxo discreto ou modesto -a primavera, convencionalmente portadora de esperança, traz apenas críticas à aparência pessoal.
O segundo foi "Twin Beds in Rome", de John Updike. Os Maple decidiram se divorciar, mas, em termos sexuais, um não consegue deixar o outro em paz. Por hábito, eles tiram umas férias na Itália. Chegando lá, Richard acha seus sapatos, que lhe pareciam perfeitamente confortáveis em casa, uma fonte de tortura e mal consegue andar. Ele e Joan topam com uma sapataria romana onde ele compra um par de mocassins pretos de couro de crocodilo. "Eram apertados, por terem um formato elegante, mas estavam mortos -eles não mordiam com a veemência vital, enfurecida, dos outros." Eu gostei daquele "mortos". O crocodilo estava morto, sugere essa tranquila observação. Uma criatura viva deve ter sido a causa do tormento dos sapatos americanos. O cotidiano, segundo a própria formulação de Updike, recebe o que lhe é lindamente devido -em termos cômicos e nada ambíguos.
Um ex-aluno da Universidade Cornell lembrou na revista literária "TriQuarterly": "Acaricie os detalhes", Nabokov dizia, com o "r" vibrante, numa voz que era a carícia ríspida da língua de um gato, "os divinos detalhes!".
Aceito de bom grado o conselho. Não emito qualquer grande juízo a respeito das sentenças acima; só digo que elas marcaram o começo de um derretimento em minha indiferença. Tanto uma como outra ilustram o generoso talento com que a ficção comenta o microscópico rendilhado da consciência, as letras miúdas da subjetividade. Ambas são relatos em terceira pessoa que contêm uma pérola de experiência em primeira pessoa -a luz mesquinha da primavera, os sapatos que não estão mais vivos e não mordem. Ao apreciar essas linhas, você não está só em sintonia com seus autores mas também com todos que as apreciam. No ato do reconhecimento, as rígidas fronteiras do eu cedem um pouco. Isso não acontece quando você fica sabendo o que um bóson de Higgs faz.
Eu tenho uma lembrança de mim quando criança, acariciando um detalhe de um romance. Evocar esse momento é mais uma forma de restaurar a fé na ficção. A experiência foi hipnótica e deixou marcas para toda a vida, pois me mostrou como os mundos da realidade e da ficção podem se interpenetrar. Eu estava com 13 anos, sozinho na biblioteca da escola, enfeitiçado por "O Mensageiro", de L.P. Hartley. Seu herói, Leo, vindo de origens humildes, passa as férias de verão de 1900 com um colega de escola cuja família é dona de uma imensa casa de campo. O foco, claro, é o papel de Leo como mensageiro num caso amoroso ilícito. Contudo o que me atraiu foi a onda de calor de julho e o fascínio do menininho pelo termômetro da estufa e por saber se ele chegaria a 40 graus. O exemplar daquela semana da revista satírica
"Punch" chega à casa e, nele, um desenho mostra "Mr. Punch sob uma sombrinha, enxugando a testa, enquanto Toby, o cachorrinho, murchava atrás dele com a língua de fora".
Eu me lembro de largar o livro e, num gesto inspirado, atravessar a biblioteca até onde estavam guardados os antigos volumes encadernados da "Punch", pegar o volume de 1900 e ir até julho. E lá estavam eles, o cachorro morrendo de calor, a sombrinha e Mr. Punch, apertando um lenço contra a testa! Era verdade. Eu fiquei cativado, extasiado com o poder de uma coisa simultaneamente imaginada e real. E, por um breve instante, senti uma tristeza nova, uma saudade de um mundo do qual eu estava excluído. Por um momento eu tinha sido Leo, vendo o que ele via; e aí estava de volta a 1962, no internato, sem amantes que me usassem de correio, sem onda de calor, só com aquele pequeno vestígio dentro de uma revista amarelada.
Eu não via isso assim na época, mas tinha percebido como o realismo pode ganhar força por meio do verdadeiro. Vinte anos depois, eu tentaria por conta própria. Coisas que nunca aconteceram podem se emaranhar com coisas que de fato aconteceram; um ser imaginário pode dar a mão para o real de carne e osso, pode morar na sua casa, como um Henry meu um dia morou, pode ler tudo que você leu e até fazer amor com sua mulher. O ateu pode se deitar com o fiel, a enciclopédia, com o poema. Tudo que foi absorvido e meditado durante os meses sem fé -ciência, matemática, história, direito e todo o resto- você pode levar com você e colocar em uso quando voltar mais uma vez para a única fé verdadeira.

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