João Paulo
Publicação: 23/02/2013 04:00
Cartaz defende a liberdade de Julian Assange, em manifestação em frente à Embaixada do Equador em Londres: %u201CNão mate o mensageiro%u201D |
Privacidade para os fracos, transparência para os poderosos. Esse é, em síntese, o projeto político e tecnológico do WikiLeaks e dos chamados cypherpunks. O WikiLeaks todo mundo conhece. O site (o domínio foi registrado em 2006) tem como missão receber informações de denunciantes, divulgá-las ao público e se defender dos ataques legais. Revelou, entre outras ações, informações sigilosas do governo e das Forças Armadas dos EUA, tendo por isso ficado na alça de mira de investigações criminais contra seu criador, o australiano Julian Assange e seus supostos associados. Assange vive hoje asilado na Embaixada do Equador em Londres.
Já a expressão cypherpunks é menos utilizada, mas nem por isso tem história menos atribulada. Quem quiser conhecer, por dentro, a história desses guerrilheiros da informação tem agora à disposição o livro Cypherpunks – Liberdade e o futuro da internet, um diálogo entre Julian Assange, Jacob Appelbaum, Andy Muller-Maguhn e Jérémie Zimmermann (Editora Boitempo).
A palavra cypherpunks deriva de cypher (escrita cifrada) e punk, e poderia ser traduzida, sem perder o sentido, como criptopunk. Mas como a expressão já se tornou corrente em todo o mundo, ficou no original, sem tradução. A missão dos cypherpunks é criar condições de mudanças sociais e políticas por meio de informações que, para manter a eficiência e independência, devem chegar cifradas às pessoas que poderão então decodificá-las, impedindo ações de censura, constrangimento e violência. Em outras palavras, uma estratégia técnica sofisticada para levar adiante uma atitude política libertária.
O livro é um manifesto vivo – talvez por isso a escolha do formato de conversa – sobre as possibilidades e riscos da informação no contexto da internet. A história do WikiLeaks é um misto de defesa da liberdade (algo como a atualização do preceito iluminista de que todos podem saber tudo) com ação contrária aos defensores da restrição da informação. A internet não é um espaço tecnológico, mas uma rede de poder. As reações contra os vazamentos feitos pelo WikiLeaks vão desde a perseguição direta de pessoas ligadas ao site até censuras financeiras e bloqueios bancários. Nesse jogo de poder, além da ideologia, a tecnologia também mostra sua face: ela pode servir de barreira ou liberar o fluxo livre de informação. É aí que entra a estratégia, cada vez mais refinada, da criptografia. O sigilo, de certa forma, é a garantia para a publicidade.
O que os criadores do WikiLeaks perceberam é que a luta criptográfica é a única saída para impedir que uma das mais importantes criações dos últimos séculos, a internet, se torne uma “ameaça à civilização humana”. Como afirma Assange, se nada for feito contra a indústria da vigilância, em poucos anos a “civilização global se transformará em uma distopia da vigilância pós-moderna, da qual só os mais habilidosos conseguirão escapar”. Não se trata de uma antecipação, mas de um diagnóstico. Todos os que acessam a internet ou utilizam telefones celulares já se encontram hoje sob o domínio do monstro. Estamos dormindo com o inimigo ou, numa linguagem militarizada, temos um soldado debaixo da nossa cama.
Cypherpunks é um conjunto de reflexões sobre o tema. Sem perder o caráter conspiratório – e nem poderia ser diferente, em razão do tema – o livro escolhe as pessoas certas e os temas mais candentes para implicar o leitor. Além das informações sobre política e tecnologia, permite ainda avançar para o novo contexto do jornalismo investigativo feito a partir da emergência do WikiLeaks. Para quem pensa que o site se interessa apenas em espalhar documentos complicados, o livro mostra como o tratamento da informação, por jornalistas independentes, é que dá potencial de mobilização social em torno das verdades reveladas. A expressão jornalismo investigativo mudou depois do WikiLeaks.
No entanto, o grande mérito do livro é o alerta que traz para o cidadão comum. Falar em grandes vazamentos de informações, sejam elas políticas ou econômicas, que mostram o desvio ético de governos e corporações, é um fato facilmente defensável. A tradição de uma imprensa vigilante existia antes da internet. No entanto, na esteira da tecnologia que permite conhecer dados sobre a vida pública, foram se sedimentando instrumentos de invasão da privacidade a um nível até então inimaginável. A privacidade se tornou um mito. O cidadão passou a ser primeiro um consumidor, depois um suspeito. Para fazer operar esses dois personagens há um arsenal de informações armazenadas à distância de um toque no botão. É aí que entra a guerrilha da criptografia. Julian Assange: “Uma criptografia robusta é capaz de resistir a uma aplicação ilimitada de violência. Nenhuma força repressora poderá resolver uma equação matemática”.
Assange e seus companheiros sabem do que estão falando. Em primeiro lugar por dominarem a tecnologia da invasão de dados, o que permitiu ações importantes de denúncia em vários países do mundo, inclusive no Brasil. Além disso, têm sido todos eles objetos de perseguições, interrogatórios, constragimentos, censura econômica e outras ações de restrição de liberdade. Dos participantes do debate ocorrido na Embaixada do Equador em Londres – onde Assange se encontra em prisão domiciliar –, que deu origem ao livro, Jacob Appelbaum, criador de sistema que permite às pessoas resistir à vigilância na rede; e Jérémie Zimmermann, fundador da organização La Quadrature du Net, de defesa do direito do anonimato on-line, já sofreram desde interrogatórios em aeroportos até prisões ilegais e ameaças de tortura e estupro.
Censura e vigilância
O tema do primeiro diálogo é o par maior comunicação e maior vigilância. Assange lembra que, nos anos 1990, a internet foi saudada como abertura a um reino de liberdade, contra as limitações da chamadas mídias tradicionais. Com o tempo, o que era franca comunicação se tornou possibilidade de vigilância extrema. De um fenômeno concentrado inicialmente na mão das grandes potências, a vigilância se tornou hoje patrimônio de todos os Estados e objeto de comercialização. O fenômeno ficou ainda mais grave com a entrada em cena das chamadas redes sociais, que trouxeram relações pessoais e até afetivas para a internet.
Em seguida, entra em cena a questão da militarização do ciberespaço. Além da denúncia da militarização da vida civil, os ciberguerrilheiros alertam para o crescimento das ações de armazenamento de dados, seja por meio legais ou por interceptações, que têm ficado cada vez mais baratas em razão da tecnologia. Nessa lógica, o mais comum é gravar tudo, já que todos podem ser suspeitos algum dia de alguma coisa. Não se trata de grampear suspeitos, mas de universalizar a suspeita e dispor de meios técnicos para registrar todas as comunicações do mundo.
Julian, Jérémie, Andy e Jacob debatem ainda questões como a espionagem pelo setor privado (sai o Estado e entra o Google), as possibilidades de combate à vigilância extrema por meios técnicos adequados (criptografia), as relações da internet com a política, o direito internacional e a economia, e, finalmente, sobre a censura na rede.
Para quem pensa que a proibição na internet é obra apenas de governos autoritários do outro lado do mundo, a Outrolândia, os cypherpunks denunciam como as páginas referentes ao próprio WikiLeaks são censuradas nos EUA pelo Google. “Minha experiência”, afirma Assange, “é que no Ocidente a coisa é muito mais sofisticada em termos do número de camadas de desonestidade e obscurecimento sobre o que está realmente acontecendo”. As camadas, que se sucedem da ponta que emerge em torno dos grandes escândalos, vão se aprofundando na sociedade a partir de elementos econômicos (sobre quem financia quem fala), morais (em torno de preconceitos) e até na forma de distribuição das mensagens (com o impedimento de acesso).
Depois de trilhar rotas pessimistas, os debatedores encerram o livro com um diálogo sobre as possibilidades libertárias da rede. Para quem quer fazer do mundo um lugar melhor, na opinião dos cypherpunks, além da denúncia da vigilância ubíqua é preciso defender o caráter profundamente libertador da internet. O caminho é a construção da uma rede anônima, de livre circulação da informação e feita de códigos abertos. Um projeto que envolve técnica para obtenção de um propósito político.
As palavras-chave talvez sejam autodeterminação, liberdade e diversidade. Para Assange e companhia, até a utopia, no singular, é uma forma de violência.
CYPHERPUNKS LIBERDADE E FUTURO DA INTERNET
De Julian Assange, Jacob Appelbaum, Andy Muller-Maguhn e Jérémie Zimmermann
Editora Boitempo, 164 páginas, R$ 29
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