domingo, 24 de fevereiro de 2013

CIÊNCIA » O tataravô dos mamíferos-Bruna Sensêve‏

Grupo internacional de pesquisa conclui que ancestral comum do grupo ao qual pertence o homem era um pequeno animal de 250g. Brasileiros integram a equipe de trabalho 


Bruna Sensêve

Estado de Minas: 24/02/2013 

Uma pequena criatura com uma enorme cauda, dentes afiados, focinho alongado e cinco dedos em cada pata. Coberto de pelos e pesando no máximo 250g, o animal é o possível ancestral comum a todos os mamíferos placentários existentes na Terra. Isso quer dizer que esse comedor de insetos, que existiu há cerca de 65 milhões de anos, deu origem ao grupo animal mais diversificado do planeta, incluídos aí humanos, cavalos, cachorros, baleias, morcegos e ratinhos de laboratório. Os únicos mamíferos — caracterizados pela presença de glândulas mamárias e a produção de leite por parte das fêmeas para alimentar os filhotes — que ficam de fora do conjunto são aqueles que botam ovos, como o ornitorrinco, e os marsupiais, como o coala e o canguru.
A descrição é resultado do trabalho de seis anos de um grupo internacional de pesquisadores, com participação de brasileiros, que resultou no desenho em que são destacadas as principais características do animal. O estudo foi publicado recentemente na revista Science. Para realizar a pesquisa, os cientistas analisaram tanto as informações genéticas das espécies vivas quanto as características morfológicas de fósseis de milhares de anos encontrados por paleontólogos em escavações ao redor do mundo.
A combinação desses dados, que levou seis anos para ser concluída, representa uma nova forma de estudo da evolução. Até então, os principais dados usados para a construção de árvores evolutivas eram apenas fenômicos (baseados na análise física, anatômica, de traços e de comportamentos) ou genéticos. A integração das duas abordagens ainda não havia sido feita, apesar de já ter sido apontada como essencial por alguns estudiosos.
Para o vice-presidente sênior e curador do Museu Americano de História Natural, Michael Novacek, reconstituir o início da árvore da vida é como montar a cena de um crime que ocorreu há muito tempo. “As novas ferramentas de DNA adicionam informações importantes, mas também precisamos de traços físicos, como um corpo, ou, no âmbito científico, fósseis e anatomia. Combinando todas as provas produzimos a reconstrução mais informada de um evento passado”, descreve.
As duas técnicas de análise geraram um debate científico sobre a origem dos mamíferos placentários. Inicialmente, evidências fósseis indicavam que eles teriam surgido após o Cretáceo-Paleógeno, período em que aconteceu a extinção dos dinossauros. No entanto, a teoria foi questionada nos anos 1990, quando os estudos genômicos sugeriram que essa linhagem era mais antiga. Essa segunda hipótese, chamada de Revolução terrestre do Cretáceo, aponta que a diversificação desses animais estaria relacionada à separação dos continentes, antes da extinção dos répteis gigantes. O impulso para que o ancestral comum se diversificasse em inúmeras espécies seria a fragmentação do supercontinente Gondwana durante o Jurássico e o Cretáceo.
A combinação dos dois tipos de análise feita pelo grupo, liderado por Maureen O’Leary, do Museu Americano de História Natural, conclui que os mamíferos já existiam na época dos dinossauros, mas acabaram favorecidos pelo desaparecimento dos grandes répteis. De acordo com os pesquisadores, o evento que eliminou os dinossauros não aviários foi, aparentemente, um fator essencial para a diversificação acelerada do ancestral placentário em várias outras espécies. Com os temíveis predadores extintos e um enorme território com alimentos disponível, os mamíferos puderam se desenvolver livremente.
A longa análise realizada faz do projeto uma enorme potência morfológica, já que, geralmente, um grupo de 500 caracteres analisados é considerado de grande dimensão e, no caso dessa pesquisa, foi gerado um número sem precedentes de quase 5.000 caracteres. O quadro final traz uma quantidade nunca vista de informações para cada um dos 83 mamíferos que foram estudados no projeto.
Esse imenso conjunto de dados foi o responsável pela bem-sucedida reconstituição do ancestral placentário. Munidos de uma técnica de otimização dos dados, os cientistas puderam determinar quais características apareceram pela primeira vez no ancestral e também aquelas que permaneceram inalteradas nos seus descendentes mais distantes. Assim, os especialistas puderam concluir que a fêmea da antiga espécie tinha um útero em formato de dois chifres, um cérebro com córtex retorcido e uma placenta em que o sangue materno entra em contato estreito com as membranas que envolvem o feto.

Questões O projeto e o conjunto de dados levantados deverá ser o ponto de partida para uma série de questões científicas de extrema importância, como a capacidade dos mamíferos de sobreviver a mudanças climáticas. Se o fizeram no passado, poderão resistir no futuro? Segundo Fernando Perini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que participou do estudo, os resultados iniciais podem estimular muitas outras investigações. “Futuros desdobramentos certamente incluirão novas espécies e, dessa forma, permitirão novas abordagens mais específicas. Estudos potenciais incluem a evolução dos primatas e origem de características que permitiram o surgimento da espécie humana.”
O vice-presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, Max Cardoso Langer, chama a atenção para outra questão que surge com a pesquisa. Um ramo da árvore dos mamíferos placentários chamado Afrotheria, com animais que variam dos elefantes aos desconhecidos oricteropos e vivem na África, não se originaram no continente, mas nas Américas. Isso porque a espécie Carodinia vieirai, desse ramo, foi encontrada no interior do Brasil. “É uma evidência de que, no início do Cenozoico, era possível cruzar a barreira terrestre entre a África e a América do Sul”, considera.

Três perguntas para...

Fernando Perini, pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais

Como o ancestral placentário pode ter sobrevivido ao evento que levou à extinção dos dinossauros?
Não temos como afirmar com certeza por que a linhagem dos mamíferos placentários sobreviveu à extinção do fim do Cretáceo. Certamente, alguns organismos estão melhor pré-adaptados para suportar determinadas perturbações ambientais que outros. As relações entre os organismos e o meio ambiente são tão intrincadas que, na maioria das vezes, é difícil prever como cada organismo reagirá a determinadas mudanças.

A combinação de dados morfológicos e genéticos é inovadora e quebrou alguns paradigmas. O senhor acredita que poderá fornecer uma rede ainda maior de novos dados sobre a evolução?
A ciência é composta principalmente de discussões e questionamentos, e seria imprudente dizer que esse trabalho representa um ponto final nas discussões sobre a origem dos mamíferos placentários. Esperamos que haja muitas reações a esse trabalho, questionamentos e discussões. Certamente, o trabalho está sujeito a críticas, revisões e incrementos, e, à medida que novos dados e análises sejam feitos, teremos um retrato cada vez mais preciso da evolução dos mamíferos.

Para a pesquisa foi usado um banco de dados disponível gratuitamente ao público na web. Como foi a interação com essa nova plataforma?
O uso do Morphobank e a compilação da matriz usada neste trabalho representa um grande avanço. Essa ferramenta permite a compilação de um volume muito grande de dados e a colaboração de diversos pesquisadores baseados em diferentes pontos do planeta. Esperamos que se torne uma ferramenta padrão para esse tipo de estudo.

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