domingo, 17 de março de 2013

Clássico alemão é reeditado por conter expressões politicamente incorretas


 O Estado de S.Paulo - 17/03/2013

Thais Caramico
ESPECIAL PARA O ESTADO / BERLIM


O politicamente correto chegou também à literatura infanto juvenil da Alemanha. Assim como as polêmicas envolvendo o caso de Monteiro Lobato no Brasil, um dos maiores nomes do país está em evidência: Otfried Preussler, autor de Die Kleine Hexe (ABruxinha), de 1957, e morto aos 89 anos no dia 18 de fevereiro.

A questão, no entanto, não é proibir a distribuição desse clássico na rede pública de educação básica,como chegou a ser discutido no caso de Caçadas de Pedrinho, mas sim reeditar a obra eliminando palavras e passagens consideradas inadequadas e racistas.
A decisão foi anunciada pela editora Thienemann Verlag logo após a ministra alemã das Relações Familiares, Kristina Schröder – do partido conservador União DemocrataCristã, o mesmo da chanceler Angela Merkel –, declarar ser a favor da alteração.

Para entender melhor a história, é preciso voltar um pouquinho ao fim de 2012, quando o editor da Thienemann Verlag, Klaus Willenberg, recebeu uma carta que apontava “um sério problema” na página 86 do livro da inexperiente bruxinha de 127 anos que tem um ano para aprender a ser uma ótima bruxa.

O leitor chama-se Mekonnen Mesghena, que aos 14 anos deixou a Eritreia, no Nordeste da África, como refugiado, para viver na Alemanha. Formou-se em jornalismo e hoje é diretor de Migração e Diversidade da Fundação Heinrich Boell. Ele lia para a filha quando foi surpreendido por algumas palavras e, como tem dito nos jornais, não conseguiu continuar a leitura como uma atividade prazerosa. “A experiência foi muito ruim e até minha filha notou que algo estava errado”, ele costuma falar.

Ao editor da Thienemann Verlag, Mesghena pediu que a obra fosse revisada, especialmente no trecho em que os personagens se fantasiam para celebrara Fastnacht, espécie de carnaval que acontece no Sul da Alemanha e também em algumas cidades da Áustria e Suíça. O texto, em tradução livre, fica assim: “Mas os dois negros não eram do circo, nem os turcos e indianos. Nem mesmo as meninas chinesas, os ogros, as mulheres esquimós e o sheik do deserto”.

A carta poderia ter sido um capítulo único e esquecido nessa história,não fosse a ministra Schröder dizer em público que gostaria de ler o livro para a filha sem ter de pular ou editar essa parte, insinuando, então, uma atitude da editora e afirmando o teor discriminatório.

O editor consultou o autor que, aos 89 anos(com mais de32 livros traduzidos em 55 idiomais) aceitou remover a palavra e qualquer outra parte que fosse considerada ruim. No fim de janeiro, cerca de duas semanas antes de Preussler morrer, a editora anunciou o lançamento de uma reedição“correta”de A Bruxinha, prevista para julho de 2013. A notícia não caiu bem e, desde então, a empresa só responde a entrevistas através de uma carta explicativa de cinco páginas e um outro documento escrito em primeira pessoa por Klaus Willenberg, no qual ele lamenta a má repercussão e até prevê um boicote às vendas,mas se mantém firme na decisão.

Para ele, não há censura ou uso excessivo do termo politicamente correto. Oque ele defende é que por ter sido escrito em 1957, alguns termos do livro não fazem mais sentido.Einsiste em chamar a alteração da obra por outro nome: modernização linguística. “Muitas crianças leem os livros do Preussler sozinhas e acabariam não dando atenção a uma nota de rodapé. Nós somos uma editora de literatura infantil responsável por aquilo que publicamos. Portanto,um texto para crianças nunca pode ser confuso ou mal interpretado. Além do mais, a linguagem afeta a consciência e se um termo discriminatório pode ser evitado, pensamos numa forma razoável de omiti-lo”, diz Willenberg.

Para a diretora da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, Christiane Raabe, a questão é muito maior. “Lamento essa decisão por diversas razões. O debate deixa claro que a autonomia da arte,um pré-requisito essencial para o processo criativo do artista, não se aplica para a literatura infantil. É um revés levando em conta a dura batalha para o reconhecimento da literatura infantil e tudo que
 la sofre para ser entendida como parte da literatura em geral. Esse debate a enfraquece”, disse em entrevista ao Estado.

O fato de a ministra ter colocado em xeque um clássico alemão fez com que o público entrasse em uma discussão surpreendentemente feroz. “A questão é que, como mãe, ela pode achar o que quiser. Mas, como representante do governo, a cena é outra”, defende a especialista. Para ela, há ondas de pensamentos retrógrados que se repetem com os anos. “Nos anos 1970, por exemplo, os contos dos Irmãos Grimm eram um tabu, diziam que de tão cruéis podiam infringir a alma do leitor”, completa a diretora da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique.

Nenhum comentário:

Postar um comentário