É cada vez maior o número de crianças que
deixam a infância de lado para iniciar precocemente a vida adulta.
Problema é grave e já preocupa pais e especialistas
Sandra Kiefer
Estado de Minas: 17/03/2013
Ser criança é coisa
do passado para as novas gerações de brasileirinhos. Elas estão cada vez
mais expostas aos apelos do consumismo exacerbado, à erotização precoce
e às agendas extracurriculares apertadas, que não deixam espaço para
brincadeiras sem compromisso. E são laçadas cada vez mais cedo. Para as
meninas, a cobrança é ainda maior. Espécie de miniadultas, elas se
vestem como as mães e, tão novas, têm hora marcada no salão de beleza
para fazer as unhas, alisamento no cabelo e mechas californianas nas
pontas. Para quem tem mais de 4 anos, a indústria começa a oferecer
sutiã para aumentar os seios, maquiagem e sandálias de salto.
Preocupados
com essa realidade, pelo menos 100 casais passaram a manhã de ontem na
Paróquia Nossa Senhora Rainha, no Bairro Belvedere, na região Centro-Sul
de Belo Horizonte, discutindo maneiras de lidar com o fenômeno da
chamada adultização infantil. O workshop foi promovido pelo movimento
Resgatando a Infância, fundado há um ano e meio por especialistas de
diversas áreas, que já conta com a adesão de cerca de 300 pessoas no
Facebook. “Por mais que a gente alerte nos consultórios, os pais não
conseguem enxergar a gravidade da situação dos seus filhos, que estão
tendo sua infância encurtada e a adolescência esticada. Elas estão
embarcando na onda. Se a filha da fulana faz, a minha também pode”, diz a
coordenadora do movimento, Cristina Silveira, psicopedagoga e
psicanalista infantil.
Antes da hora, meninos e meninas são
chamados a participar do mundo dos adultos, seja assistindo à televisão
até tarde, navegando descontrolados pela internet ou saindo à noite para
restaurantes com os pais, que não têm mais tempo livre com as crianças.
“A sensação que eu tenho é que estão colocando a criança para pilotar
um avião, mas ela ainda não sabe dirigir nem um velotrol. Etapas estão
sendo queimadas”, compara a pediatra Filomena Camilo do Vale. Ela lembra
que, antigamente, criança era proibida de participar de conversa de
gente grande. “Hoje, elas são chamadas a dar palpite na separação dos
pais, no noticiário do dia e até nas consultas com a pediatra. Elas
estão vivendo e participando de problemas que muitas vezes não dão conta
de opinar”, alerta.
Na semana passada, a pediatra atendeu o
caso de uma pequena paciente que, aos 10 anos, parecia profundamente
entristecida. Apertou os pais contra a parede, que buscaram apurar a
causa da mudança de humor. Por intermédio da rede de relacionamentos
virtuais Facebook, a garota tinha acessado um site de pornografia. “Ela
ficou tão chocada com o que viu que ficou triste, não sentia mais
vontade de viver nem conversar. Era demais para alguém que não tinha
glândulas mamárias”, explica Filomena. Ela se reuniu com a criança para
explicar a diferença entre a pornografia e o sexo feito com amor. “A
marca da infância é a alegria. Criança não combina com depressão. As
crianças estão adoecendo”, alerta a pediatra. Apesar de estar autorizado
para a faixa acima de 13 anos, o Facebook tem cadastradas mais de 7,5
milhões de crianças usando o endereço de e-mail emprestado até dos
próprios pais.
As cenas se repetem cotidianamente nas portas dos
colégios particulares da capital mineira. No aguardo dos pais, babás ou
motoristas, os alunos travam uma guerra de celulares para avisar que a
aula acabou e já podem ir buscá-los. As meninas retocam o batom e postam
fotos das colegas na internet. “Queria que o quadro negro fosse um
espelho bem grande”, brinca M., de 10 anos, que usa a câmera do telefone
para checar se o cabelo está arrumado. Ela conta que a amiga J. leva no
bolso do uniforme duas cores de batom, rímel e espelho. “Em todo
intervalo da aula ela retoca a maquiagem. Acho uma bobagem. No lugar do
espelho, levo meu telefone”, explica.
A mãe da menina, a
empresária A., é dona de loja de roupas infantojuvenis em shoppings de
luxo na capital. Para a empresária, o comportamento é geral: “Quem não
sofre com isso está mentindo. Tenho mães que compram R$ 5 mil em roupas
para as filhas e deixam elas usarem saias minúsculas de paetês. Nem é
tanto a roupa que incomoda na minha filha, é o fato de ela achar que é
dona do próprio nariz e querer ir ao cinema sozinha com a turma da
escola. Não dá”, desabafa. Segundo a psicopedagoga Cristina Silveira, as
meninas se vestem como mocinhas, mas ainda não têm maturidade para
enfrentar o assédio que vão passar a receber. “As escolas viraram um
shopping para oferecer produtos extraclasse. Não basta ofertar o ensino
ou a parte cognitiva. É preciso ajudar as famílias a nutrir com valores e
criar uma moldura social para proteger as crianças. A família tem de
ser forte e não ceder”, ensina.
Números
47%
das crianças com idade entre 9 e 16 anos, no Brasil, entram na internet todos os dias, segundo a pesquisa TIC Kids On-line 2012
59%
das
crianças de 5 a 9 anos já utilizaram um celular e 24% dos pequenos já
têm um aparelho próprio aos 9 anos, segundo pesquisa TIC Crianças 2010
5h
é
o tempo médio que a criança brasileira fica na frente da televisão por
dia, segundo dados de pesquisa do Ibope em 2011. Elas assistem a cerca
de 40 mil propagandas em um ano
Em defesa da infância plena
Pais usam diálogo e firmeza para
convencer filhos a não se transformarem em adultos antes do tempo. Apoio
de psicopedagogos ajuda nessa batalha
Sandra Kiefer e Patricia Giudice
Nove
tatuagens pelo corpo, dois casamentos nas costas, a locutora de voz
aveludada Vanessa Mariano, de 43 anos, daria a primeira impressão de ser
uma mãe liberal. No entanto, a moradora no Bairro Anchieta, na Região
Centro-Sul de Belo Horizonte, passou a ser tachada de “mãe mais chata do
prédio” pelos filhos dos vizinhos. Ela e a filha Monique, de 9, sofrem
uma espécie de bullying no prédio em função de a criança ser obrigada a
interromper a brincadeira e subir para se deitar pontualmente às 21h30.
Ela também só admite esmalte rosa clarinho e brilho nos lábios. Com a
palavra, a criança: “Minha mãe me explicou que a infância dura pouco
tempo e que é bom aproveitar. Se ela falou, é porque deve ser isso
mesmo.” Vanessa faz parte de um grupo de mães preocupadas, que enfrentam
tudo e todos em prol da infância plena dos filhos.
De acordo com
o argumento da mãe, Monique terá a vida inteira para viver a
adolescência e se portar como adulta. “Sei que há uma pressão social,
mas não vou ceder. Tenho senso de responsabilidade por ter posto minha
filha no mundo. Eu me sentiria relapsa se fizesse diferente”, desabafa a
mãe, que chegou a consultar a pediatra, sentindo-se insegura diante das
decisões a serem tomadas em prol da filha. “Acredita que a mãe de uma
menina de 6 anos fez escova progressiva na menina? Minha filha pediu
para fazer também. Fiquei arrepiada só de pensar e expliquei a ela que
se tratava de uma intervenção química no corpo e que poderia trazer
problemas ao organismo dela”, conta Vanessa, que vê meninas de 10 e 11
anos descolorindo os pelos na piscina e descendo maquiadas para tomar
sol.
Silvana Reis e Silva, de 42, procurou ajuda profissional
quando percebeu que seu filho Henrique era uma criança agitada demais
aos 9 anos e que ele precisava amadurecer um pouco. Enquanto o garoto
desacelerava, viu que a filha Gabriela, então com 11 anos, era madura
demais para a idade. “Ela conversava coisas que não eram da idade dela,
me chamava de careta e o computador tomou conta da infância dela”, disse
Silvana. Com ajuda psicopedagógica, a mãe e o marido, Marcelo,
começaram a mostrar à filha que ela estava pulando etapas da vida e que
ainda estava na fase de brincar, andar de bicicleta. “Na época, fomos
buscando alternativas. Ela deixou um pouco o computador para frequentar
mais o clube do qual somos sócios, e a conviver mais com outras pessoas
da idade dela.”
Gabriela voltou a brincar na área infantil do
clube, participar das colônias de férias. Tudo que achava não fazer mais
parte da vida dela. Hoje, aos 13, começa a vivenciar a etapa que queria
ultrapassar. E a brincadeira passou a ocupar lugar na família. Todos os
sábados eles se reúnem, jogam, brincam, se desafiam. Um cardápio de
jogos que deixaram a família mais unida. “É sempre muito bacana, trouxe
uma harmonia familiar”, diz Silvana.
Mas, segundo a mãe, o
desafio continua. O uso da maquiagem está em constante negociação. “Ela
não vai para a escola sem se maquiar, é um lápis ou um rímel. Tive que
frear muito porque já começava a querer passar uma sombra, um pó, blush.
Explicamos que as mulheres se maqueiam quando vão para uma festa, a
escola não é o lugar.” Observando as outras amigas, Silvana viu que o
problema estava em todas as famílias. “Em um aniversário dela, todas as
amigas trouxeram maquiagem de presente. Levei um susto quando vi. Tive
que negociar o que era para usar em qual situação”, afirmou.
ALERTA
Segundo a psicopedagoga Maria Eliane Oliveira de Faria, os pais
precisam ficar atentos para que as etapas não sejam queimadas e
comprometam o desenvolvimento infantil. O problema, segundo ela, é que
no futuro tais crianças se transformam em adultos infantilizados, que
não conseguem lidar com frustrações, perdas, negações. “Também chamamos
de adultoscentes, que são adultos que não se desenvolveram nas etapas
certas”, explicou. Segundo Eliane, a infância é uma etapa fundamental
que se reflete no futuro, principalmente em termos de limite.
“Se
eu pudesse mudar alguma coisa, acho que deveria brincar muito mais do
que brinco e ter uma pessoa do meu lado para cuidar de mim”, afirma V.,
de 11 anos, filha da comerciante G., mãe solteira e envolvida no ramo da
moda feminina e da beleza. Ela conta que, quando acorda, a mãe
geralmente ainda está dormindo, por trabalhar até tarde. A menina toma o
café, se veste e vai para a escola sozinha, a três quarteirões de
casa. “Não é fácil criar uma filha sozinha e ela tem de me ajudar. Ela
também é muito independente e algumas coisas eu corto”, explica G., que
evita deixar a filha fazer testes para ser atriz de televisão, seu maior
sonho. “Primeiro, tem de estudar”, afirma a mãe, que não concordou em
comprar um iPhone para a filha, substituído por modelo mais barato e com
as mesmas funções.
Família é a prioridade
Sandra Kiefer e Patricia Giudice
Para
o estilista mineiro Ronaldo Fraga, que participa do movimento
Resgatando a Infância, a criação dos filhos é uma aposta. Ele estaria
ontem dando palestra no workshop sobre educação infantil se não tivesse
que apresentar esta semana a nova coleção na São Paulo Fashion Week
(SPFW). Ele já faltou ao evento de moda para se dedicar mais a outras
prioridades, como a família (a esposa Ivana e os filhos Ludovico e
Graciliano) e a escrever livros. Durante 10 anos, viveu sem televisão
dentro de casa.
Quando o filho mais velho completou 11 anos, o
casal cedeu ao apelo das crianças. “Acho que a tevê tira muito mais do
que dá. Não me refiro aos desenhos, que hoje são mais politicamente
corretos do que antes, mas tem as propagandas, que estimulam o ter mais
do que o ser. Outra coisa é o emburrecimento. É fácil deixar os filhos
em frente da tela enquanto eles se acalmam e você faz outras coisas”,
afirma. No lugar da telinha, ele e a mulher se esforçam para levar os
filhos em passeios com o cachorro e até para andar de metrô em BH. Nos
fins de semana e feriados, buscam ir a sítios de amigos e à fazenda dos
sogros dele, em Montes Claros. “Meus sogros estão vivos e aproveitamos
ao máximo a zona rural. Muitas crianças acham que alface nasce na banca
do Verdemar”, completa.
Palavra de especialista
Jane Patrícia Haddad – psicopedagoga
Crianças têm responsabilidades demais
“Há
uma expectativa das famílias para que as crianças cresçam rápido e
percebemos que, com isso, elas estão pulando a etapa do brincar. A
brincadeira é importante porque é ali que ela expressa o que não
consegue colocar em palavras, como a raiva, a angústia, mas elas não
estão fazendo essa passagem na infância. As crianças hoje têm
responsabilidades demais, horários rígidos, estão muito precoces. São
miniadultos, no jeito de se vestir, nos sapatos que usam, como falam,
está exacerbado e isso apressa o crescimento. Os pais precisam entender
que a criança não é autônoma, ela não tem que ajudar a mãe quando os
pais são separados, isso é um peso muito grande e faz com que ela queime
etapas. A criança precisa de uma organização externa que vem do adulto,
que organize sua rotina sem exageros até que ela chegue à idade certa
de ser independente. Outro ponto importante é que esses meninos e
meninas têm que ser tolhidos, têm que viver frustrações. Eles têm que
esperar para conquistar as coisas. Se aos 10 anos as meninas vão ao
shopping sozinhas, supermaquiadas, de salto alto, o que vão fazer aos 15
anos? Se o menino tem celular melhor que o dos pais, o que ele vai
desejar, buscar, batalhar amanhã?”
15 dicas para pais e mães
Veja sugestões e
alertas das psicopedagogas Maria Eliane Oliveira de Faria e Jane
Patrícia Haddad e da psicóloga Raquel Moreno para que seus filhos vivam
no tempo certo:
Não transforme seu filho em um miniexecutivo. Por
mais que ele pratique um esporte e tenha aula extra de línguas, por
exemplo, reserve um tempo diário para ele brincar
As atividades além
da escola têm que ser naturais, conforme o gosto da criança. Se ele não
gosta de futebol, não o obrigue a praticar tal esporte.
Brincar
não é quantidade, mas qualidade. Colocar seu filho em frente a uma
televisão não proporciona interação. Fique perto dele, ofereça um
quebra-cabeça, brinquedos de montar adequados para a idade, mas que o
faça raciocinar.
Observe na escola o espaço dado para o lúdico,
se tem monitor para brincadeiras. Se for em tempo integral, fique atento
aos horários para cada atividade.
Crianças de 6, 7 anos não
precisam de celular. Avalie com cuidado a necessidade e não aceite o
pedido para mudar constantemente de aparelho.
Preserve o que as
crianças estão assistindo e ouvindo na televisão e fique de olho no que
ele está acessando pelo computador. Se tem Facebook e outras redes
sociais, entre como amigo.
Estabeleça o limite de entrar na rede
social a partir dos 13 anos, mas com a sua supervisão. O tempo no
computador depende de cada rotina, mas delimite o quanto julgar
necessário e cumpra.
Dê limites ao seu filho. Diga não.
Os pais são a lei da criança. Ela precisa desse corte para desenvolver frustrações e amadurecimento saudável.
Mesmo
que tenha uma agenda corrida, tire um tempo para ficar com seu filho
sem se preocupar com outras coisas. Brinque com ele. Por meio da
brincadeira, você passa valores, a criança se solta e um vínculo
familiar é criado.
Nas meninas: é normal brincar com o sapato da
mãe, com a roupa, o batom. Mas fique atenta se a vaidade ficar
excessiva. Se a criança manifestar vontade de estar maquiada de manhã e à
tarde ou de ir para a escola maquiada, por exemplo. Imponha limite.
Peça para tirar um pouco e deixe usar um gloss, por exemplo.
Nos
meninos: o problema está no excesso do videogame, computador, jogos de
lutas e guerras. Ofereça a ele um livro, um jogo de raciocínio, busque
estratégias para que ele não fique preso em frente à tela.
Faça com que seu filho conviva com outras crianças. Leve-o ao parque, ao teatro,
cinema, ande de bicicleta com ele, faça programas em família.
A vida da criança é organizada pelo adulto, não faça que ela seja independente antes da hora.
Não se entregue aos produtos que lhe são oferecidos. Pense criticamente e avalie se é mesmo necessário para a vida do seu filho
Não
exagere nos presentes, na tentativa de compensar o tempo que fica fora
de casa, longe do filho. Busque conversar e brincar, fazer atividades
juntos.
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