domingo, 17 de março de 2013

Pequenos adultos -Sandra Kiefer

É cada vez maior o número de crianças que deixam a infância de lado para iniciar precocemente a vida adulta. Problema é grave e já preocupa pais e especialistas 


Sandra Kiefer

Estado de Minas: 17/03/2013 

Ser criança é coisa do passado para as novas gerações de brasileirinhos. Elas estão cada vez mais expostas aos apelos do consumismo exacerbado, à erotização precoce e às agendas extracurriculares apertadas, que não deixam espaço para brincadeiras sem compromisso. E são laçadas cada vez mais cedo. Para as meninas, a cobrança é ainda maior. Espécie de miniadultas, elas se vestem como as mães e, tão novas, têm hora marcada no salão de beleza para fazer as unhas, alisamento no cabelo e mechas californianas nas pontas. Para quem tem mais de 4 anos, a indústria começa a oferecer sutiã para aumentar os seios, maquiagem e sandálias de salto.

Preocupados com essa realidade, pelo menos 100 casais passaram a manhã de ontem na Paróquia Nossa Senhora Rainha, no Bairro Belvedere, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, discutindo maneiras de lidar com o fenômeno da chamada adultização infantil. O workshop foi promovido pelo movimento Resgatando a Infância, fundado há um ano e meio por especialistas de diversas áreas, que já conta com a adesão de cerca de 300 pessoas no Facebook. “Por mais que a gente alerte nos consultórios, os pais não conseguem enxergar a gravidade da situação dos seus filhos, que estão tendo sua infância encurtada e a adolescência esticada. Elas estão embarcando na onda. Se a filha da fulana faz, a minha também pode”, diz a coordenadora do movimento, Cristina Silveira, psicopedagoga e psicanalista infantil.

Antes da hora, meninos e meninas são chamados a participar do mundo dos adultos, seja assistindo à televisão até tarde, navegando descontrolados pela internet ou saindo à noite para restaurantes com os pais, que não têm mais tempo livre com as crianças. “A sensação que eu tenho é que estão colocando a criança para pilotar um avião, mas ela ainda não sabe dirigir nem um velotrol. Etapas estão sendo queimadas”, compara a pediatra Filomena Camilo do Vale. Ela lembra que, antigamente, criança era proibida de participar de conversa de gente grande. “Hoje, elas são chamadas a dar palpite na separação dos pais, no noticiário do dia e até nas consultas com a pediatra. Elas estão vivendo e participando de problemas que muitas vezes não dão conta de opinar”, alerta.

 Na semana passada, a pediatra atendeu o caso de uma pequena paciente que, aos 10 anos, parecia profundamente entristecida. Apertou os pais contra a parede, que buscaram apurar a causa da mudança de humor. Por intermédio da rede de relacionamentos virtuais Facebook, a garota tinha acessado um site de pornografia. “Ela ficou tão chocada com o que viu que ficou triste, não sentia mais vontade de viver nem conversar. Era demais para alguém que não tinha glândulas mamárias”, explica Filomena. Ela se reuniu com a criança para explicar a diferença entre a pornografia e o sexo feito com amor. “A marca da infância é a alegria. Criança não combina com depressão. As crianças estão adoecendo”, alerta a pediatra. Apesar de estar autorizado para a faixa acima de 13 anos, o Facebook tem cadastradas mais de 7,5 milhões de crianças usando o endereço de e-mail emprestado até dos próprios pais.

As cenas se repetem cotidianamente nas portas dos colégios particulares da capital mineira. No aguardo dos pais, babás ou motoristas, os alunos travam uma guerra de celulares para avisar que a aula acabou e já podem ir buscá-los. As meninas retocam o batom e postam fotos das colegas na internet. “Queria que o quadro negro fosse um espelho bem grande”, brinca M., de 10 anos, que usa a câmera do telefone para checar se o cabelo está arrumado. Ela conta que a amiga J. leva no bolso do uniforme duas cores de batom, rímel e espelho. “Em todo intervalo da aula ela retoca a maquiagem. Acho uma bobagem. No lugar do espelho, levo meu telefone”, explica.

A mãe da menina, a empresária A., é dona de loja de roupas infantojuvenis em shoppings de luxo na capital. Para a empresária, o comportamento é geral: “Quem não sofre com isso está mentindo. Tenho mães que compram R$ 5 mil em roupas para as filhas e deixam elas usarem saias minúsculas de paetês. Nem é tanto a roupa que incomoda na minha filha, é o fato de ela achar que é dona do próprio nariz e querer ir ao cinema sozinha com a turma da escola. Não dá”, desabafa. Segundo a psicopedagoga Cristina Silveira, as meninas se vestem como mocinhas, mas ainda não têm maturidade para enfrentar o assédio que vão passar a receber. “As escolas viraram um shopping para oferecer produtos extraclasse. Não basta ofertar o ensino ou a parte cognitiva. É preciso ajudar as famílias a nutrir com valores e criar uma moldura social para proteger as crianças. A família tem de ser forte e não ceder”, ensina.

Números

47%
das crianças com idade entre 9 e 16 anos, no Brasil, entram na internet todos os dias, segundo a pesquisa TIC Kids On-line 2012

59%

das crianças de 5 a 9 anos já utilizaram um celular e 24% dos pequenos já têm um aparelho próprio aos 9 anos, segundo pesquisa TIC Crianças 2010

5h
é o tempo médio que a criança brasileira fica na frente da televisão por dia, segundo dados de pesquisa do Ibope em 2011. Elas assistem a cerca de 40 mil propagandas em um ano


Em defesa da infância plena
Pais usam diálogo e firmeza para convencer filhos a não se transformarem em adultos antes do tempo. Apoio de psicopedagogos ajuda nessa batalha
 



Sandra Kiefer e Patricia Giudice


Nove tatuagens pelo corpo, dois casamentos nas costas, a locutora de voz aveludada Vanessa Mariano, de 43 anos, daria a primeira impressão de ser uma mãe liberal. No entanto, a moradora  no Bairro Anchieta, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, passou a ser tachada de “mãe mais chata do prédio” pelos filhos dos vizinhos. Ela e a filha Monique, de 9, sofrem uma espécie de bullying no prédio em função de a criança ser obrigada a interromper a  brincadeira e subir para se deitar pontualmente às 21h30. Ela também só admite esmalte rosa clarinho e brilho nos lábios. Com a palavra, a criança: “Minha mãe me explicou que a infância dura pouco tempo e que é bom aproveitar. Se ela falou, é porque deve ser isso mesmo.” Vanessa faz parte de um grupo de mães preocupadas, que enfrentam tudo e todos em prol da infância plena dos filhos.

De acordo com o argumento da mãe,  Monique terá a vida inteira para viver a adolescência e se portar como adulta. “Sei que há uma pressão social, mas não vou ceder. Tenho senso de responsabilidade por ter posto minha filha no mundo. Eu me sentiria relapsa se fizesse diferente”, desabafa a mãe, que chegou a consultar a pediatra, sentindo-se insegura diante das decisões a serem tomadas em prol da filha. “Acredita que a mãe de uma menina de 6 anos fez escova progressiva na menina? Minha filha pediu para fazer também. Fiquei arrepiada só de pensar e expliquei a ela que se tratava de uma intervenção química no corpo e que poderia trazer problemas ao organismo dela”, conta Vanessa, que vê  meninas de 10 e 11 anos descolorindo os pelos na piscina e descendo maquiadas para tomar sol.

Silvana Reis e Silva, de 42, procurou ajuda profissional quando percebeu que seu filho Henrique era uma criança agitada demais aos 9 anos e que ele precisava amadurecer um pouco. Enquanto o garoto desacelerava, viu que a filha Gabriela, então com 11 anos, era madura demais para a idade. “Ela conversava coisas que não eram da idade dela, me chamava de careta e o computador tomou conta da infância dela”, disse Silvana.  Com ajuda psicopedagógica, a mãe e o marido, Marcelo, começaram a mostrar à filha que ela estava pulando etapas da vida e que ainda estava na fase de brincar, andar de bicicleta. “Na época, fomos  buscando alternativas. Ela deixou um pouco o computador para frequentar mais o clube do qual somos sócios, e a conviver mais com outras pessoas da idade dela.”

Gabriela voltou a brincar na área infantil do clube, participar das colônias de férias. Tudo que achava não fazer mais parte da vida dela. Hoje, aos 13, começa a vivenciar a etapa que queria ultrapassar. E a brincadeira passou a ocupar lugar na família. Todos os sábados eles se reúnem, jogam, brincam, se desafiam.  Um cardápio de jogos que deixaram a família mais unida. “É sempre muito bacana, trouxe uma harmonia familiar”, diz Silvana.

Mas, segundo a mãe, o desafio continua. O uso da maquiagem está em constante negociação. “Ela não vai para a escola sem se maquiar, é um lápis ou um rímel. Tive que frear muito porque já começava a querer passar uma sombra, um pó, blush. Explicamos que as mulheres se maqueiam quando vão para uma festa, a escola não é o lugar.” Observando as outras amigas, Silvana viu que o problema estava em todas as famílias. “Em um aniversário dela, todas as amigas trouxeram maquiagem de presente. Levei um susto quando vi. Tive que negociar o que era para usar em qual situação”, afirmou.

ALERTA Segundo a psicopedagoga Maria Eliane Oliveira de Faria, os pais precisam ficar atentos para que as etapas não sejam queimadas e comprometam o desenvolvimento infantil. O problema, segundo ela, é que no futuro tais crianças se transformam em adultos infantilizados, que não conseguem lidar com frustrações, perdas, negações. “Também chamamos de adultoscentes, que são adultos que não se desenvolveram nas etapas certas”, explicou. Segundo Eliane, a infância é uma etapa fundamental que se reflete no futuro, principalmente em termos de limite.

“Se eu pudesse mudar alguma coisa, acho que deveria brincar muito mais do que brinco e ter uma pessoa do meu lado para cuidar de mim”, afirma V., de 11 anos, filha da comerciante G., mãe solteira e envolvida no ramo da moda feminina e da beleza. Ela conta que, quando acorda, a mãe geralmente ainda está dormindo, por trabalhar até tarde. A menina toma o café,  se veste e vai para a escola sozinha, a três quarteirões de casa. “Não é fácil criar uma filha sozinha e ela tem de me ajudar. Ela também é muito independente e algumas coisas eu corto”, explica G., que evita deixar a filha fazer testes para ser atriz de televisão, seu maior sonho. “Primeiro, tem de estudar”, afirma a mãe, que não concordou em comprar um iPhone para a filha, substituído por modelo mais barato e com as mesmas funções.


Família é a prioridade
Sandra Kiefer e Patricia Giudice
Para o estilista mineiro Ronaldo Fraga, que participa do movimento Resgatando a Infância, a criação dos filhos é uma aposta. Ele estaria ontem dando palestra no workshop sobre educação infantil se não tivesse que apresentar esta semana a nova coleção na São Paulo Fashion Week (SPFW). Ele já faltou ao evento de moda para se dedicar mais a outras prioridades, como a família (a esposa Ivana e os filhos Ludovico e Graciliano) e a escrever livros. Durante 10 anos, viveu sem televisão dentro de casa.

Quando o filho mais velho completou 11 anos, o casal cedeu ao apelo das crianças. “Acho que a tevê tira muito mais do que dá. Não me refiro aos desenhos, que hoje são mais politicamente corretos do que antes, mas tem as propagandas, que estimulam o ter mais do que o ser. Outra coisa é o emburrecimento. É fácil deixar os filhos em frente da tela enquanto eles se acalmam e você faz outras coisas”, afirma. No lugar da telinha, ele e a mulher se esforçam para levar os filhos em passeios com o cachorro e até para andar de metrô em BH. Nos fins de semana e feriados, buscam ir a sítios de amigos e à fazenda dos sogros dele, em Montes Claros. “Meus sogros estão vivos e aproveitamos ao máximo a zona rural. Muitas crianças acham que alface nasce na banca do Verdemar”, completa.

Palavra de especialista

Jane Patrícia Haddad – psicopedagoga

Crianças têm responsabilidades demais

“Há uma expectativa das famílias para que as crianças cresçam rápido e percebemos que, com isso, elas estão pulando a etapa do brincar. A brincadeira é importante porque é ali que ela expressa o que não consegue colocar em palavras, como a raiva, a angústia, mas elas não estão fazendo essa passagem na infância. As crianças hoje têm responsabilidades demais, horários rígidos, estão muito precoces. São miniadultos, no jeito de se vestir, nos sapatos que usam, como falam, está exacerbado e isso apressa o crescimento. Os pais precisam entender que a criança não é autônoma, ela não tem que ajudar a mãe quando os pais são separados, isso é um peso muito grande e faz com que ela queime etapas. A criança precisa de uma organização externa que vem do adulto, que organize sua rotina sem exageros até que ela chegue à idade certa de ser independente. Outro ponto importante é que esses meninos e meninas têm que ser tolhidos, têm que viver frustrações. Eles têm que esperar para conquistar as coisas. Se aos 10 anos as meninas vão ao shopping sozinhas, supermaquiadas, de salto alto, o que vão fazer aos 15 anos? Se o menino tem celular melhor que o dos pais, o que ele vai desejar, buscar, batalhar amanhã?”

15 dicas para pais e mães


Veja sugestões e alertas das psicopedagogas Maria Eliane Oliveira de Faria e Jane Patrícia Haddad e da psicóloga Raquel Moreno para que seus filhos vivam no tempo certo:
Não transforme seu filho em um miniexecutivo. Por mais que ele pratique um esporte e tenha aula extra de línguas, por exemplo, reserve um tempo diário para ele brincar
 As atividades além da escola têm que ser naturais, conforme o gosto da criança. Se ele não gosta de futebol, não o obrigue a praticar tal esporte.

Brincar não é quantidade, mas qualidade. Colocar seu filho em frente a uma televisão não proporciona interação. Fique perto dele, ofereça um quebra-cabeça, brinquedos de montar adequados para a idade, mas que o faça raciocinar.

Observe na escola o espaço dado para o lúdico, se tem monitor para brincadeiras. Se for em tempo integral, fique atento aos horários para cada atividade.

Crianças de 6, 7 anos não precisam de celular. Avalie com cuidado a necessidade e não aceite o pedido para mudar constantemente de aparelho.

Preserve o que as crianças estão assistindo e ouvindo na televisão e fique de olho no que ele está acessando pelo computador. Se tem Facebook e outras redes sociais, entre como amigo.
Estabeleça o limite de entrar na rede social a partir dos 13 anos, mas com a sua supervisão. O tempo no computador depende de cada rotina, mas delimite o quanto julgar necessário e cumpra.

Dê limites ao seu filho. Diga não.
Os pais são a lei da criança. Ela precisa desse corte para desenvolver frustrações e amadurecimento saudável.

Mesmo que tenha uma agenda corrida, tire um tempo para ficar com seu filho sem se preocupar com outras coisas. Brinque com ele. Por meio da brincadeira, você passa valores, a criança se solta e um vínculo familiar é criado.

Nas meninas: é normal brincar com o sapato da mãe, com a roupa, o batom. Mas fique atenta se a vaidade ficar excessiva. Se a criança manifestar vontade de estar maquiada de manhã e à tarde ou de ir para a escola maquiada, por exemplo. Imponha limite. Peça para tirar um pouco e deixe usar um gloss, por exemplo.

Nos meninos: o problema está no excesso do videogame, computador, jogos de lutas e guerras. Ofereça a ele um livro, um jogo de raciocínio, busque estratégias para que ele não fique preso em frente à tela.

Faça com que seu filho conviva com outras crianças. Leve-o ao parque, ao teatro,
cinema, ande de bicicleta com ele, faça programas em família.

A vida da criança é organizada pelo adulto, não faça que ela seja independente antes da hora.

Não se entregue aos produtos que lhe são oferecidos. Pense criticamente e avalie se é mesmo necessário para a vida do seu filho

Não exagere nos presentes, na tentativa de compensar o tempo que fica fora de casa, longe do filho. Busque conversar e brincar, fazer atividades juntos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário