domingo, 17 de março de 2013

O xadrez nível UFC de Tezza - Caetano Galindo

folha de são paulo

ARQUIVO ABERTO
memórias que viram histórias
Curitiba, 2006
CAETANO W. GALINDOEu hoje sou vizinho de prédio de Cristovão Tezza.
Quinze anos atrás, no entanto, quando virei professor da Universidade Federal do Paraná e acabamos dividindo um gabinete, minha relação com ele era só de leitor. Foi quando vim morar o condomínio Leblon, quando juntei a biblioteca (expressão da Beth, mulher do Cristovão) com a da Sandra (Stroparo, outra colega de departamento), que a gente passou a conversar mais e a "se frequentar". (A vida social dos curitibanos, mesmo dos adotivos, como Cristovão, podia ser tema de documentário, como aqueles sobre bichinhos em extinção.)
Foi mais ou menos nessa época, e também por influência da Sandra -que me deu o meu primeiro software de xadrez- que o meu interesse de adolescência pelo jogo recebeu uma reanimação cardiorrespiratória básica; ou talvez o estado zumbi do meu jogo seja uma condenação cármica maior.
Gosto muito de xadrez, jogo bastante (sempre on-line: eis o curitibanismo), mas o jogo para mim continua sendo uma fundamental lição de humildade. Eu sou péssimo. Não evoluo. Aprendo a fracassar. A fracassar de novo. A fracassar melhor, como diria Beckett (outro enxadrista, aliás).
E nada me "humilifica" mais do que jogar com o Cristovão. Ele é bom. Bom tipo semiprofissional. Ele é sério. (E não se engane o não jogador. Quem esteve lá sabe. Xadrez é violência, é destruição. E mesmo com as melhores simpatias que ele sempre demonstra, o que o Cristovão faz comigo no tabuleiro é nível UFC.)
A gente joga hoje on-line (estilo correspondência, onde cada um dá um lance e volta no dia seguinte para conferir a resposta), já jogou na casa dele, com relógio (que é como UFC com alguém soprando baboseiras no teu ouvido), mas começamos mesmo jogando no nosso gabinete, no 11º andar do edifício d. Pedro 1º, do conjunto da Reitoria da UFPR. Sala 1104.
Lá o esquema já era o da correspondência. Eu tinha levado um tabuleirinho tipo caixa, de fechar, e cada um dava um lance, anotava numa planilha para compensar qualquer desacerto promovido pelo pessoal da limpeza e voltava dias depois para "reresponder". Era divertido. E andava bem.
Aí um dia chegou uma data de aniversário do Cristovão. Fui lá e, com o recém-adquirido salário de doutor, em 2006, comprei um tabuleiro mais bonito, com mais cara de sério, para pôr na minha mesa. Cheguei na universidade, troquei os tabuleiros, repondo as peças na posição correspondente do jogo em curso naquele momento. E dei meu lance, claro.
Dia seguinte, todo animadinho, pergunto ao Cristovão: "E você viu o jogo, daí?". E ele, claro, tem na memória a posição completa, o meu lance mais recente, a resposta dele e as possíveis alternativas de ambos.
"Mas... o tabuleiro novo? Viu lá?" (Curitibano adora terminar frase com advérbio.) Não. Simplesmente não tinha registrado.
O lance, sim. A modificação das relações sempre instáveis entre os valores relativos das peças em suas posições temporárias ele, claro, notou e avaliou (Ele viria a ganhar essa partida, como todas as outras.) Mas a "notação", os elementos concretos, esses não são relevantes.
Bons jogadores de xadrez são capazes de jogar sem um tabuleiro e peças. O mapa, sabemos, não é o território. Os peões não são o jogo.
Marcel Proust dizia que, como das pessoas só entendemos o que dela representamos para nós, é da sabedoria do romance eliminar o inacessível (as tais "pessoas reais") e instaurar representações que tenham de se sustentar plenamente. Formas.
Não sei se o que fez do Cristovão um jogador de xadrez astronomicamente melhor que eu não pode ter a ver com o que faz dele um escritor (e dos bons) e de mim um tradutor (um "reescritor" dos livros dos criadores).
Só sei que, desde que ele saiu da universidade e se mocozou no apartamento que vejo da janela, o tabuleiro está parado em posição de sentido em cima da minha mesa, esperando que algum aluno se intimide com o meu bullying ou fique com pena do meu "patetiquismo" e abra um jogo.
Eu ofereço as brancas, tá?
E vou perder. Não se preocupe.

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