É brincadeira? Bucicleide me apareceu com quatro crianças. Pois é, filhas dela. Uma menina loira, de idade indefinida (bem, ao menos para mim, que não sei mais dizer a idade de ninguém, não me pressione, por favor); um garoto igualmente claro que aparentava ter sido grotescamente disfarçado por uma peruca de índio de camelô e um par de óculos de Groucho Marx com bigode.
Mas, como eu não tenho grande intimidade com crianças, poderia muito bem ser o primo de Michelle Obama que acabou de chegar de Chicago. Pode inclusive ser um adulto proveniente daquela região do México em que a população apresenta sinais manifestos de hirsutismo facial, não sou a melhor pessoa para julgar. As outras duas crianças, se é que crianças são, tanto poderiam ser pigmeus da Nova Guiné como Buci, digo, Cleide poderia, em última instância, estar mesmo dizendo a verdade.
Aparentemente, ela teria trocado os quatro órfãos por tostequeiras elétricas na ilha de St. Lawrence, ao sul do estreito de Bering, em um esforço para lhes conferir uma existência digna, antes que elas acabassem virando ração para alce nas mãos de feitores de escravos esquimós em uma fazenda da Sarah Palin. Seria um lugar sórdido em que a mão de obra infantil é obrigada a ouvir música da cantora Björk 24 horas para trabalhar sem protestar. Para comer, apenas raspadinha sabor groselha. Ai de quem pedisse de uva.
Ainda estava digerindo as novidades quando Buci puxou-me de lado para dizer que não havia dormido na noite anterior pensando nas possíveis perguntas que a filha poderia lhe fazer e nas respostas que daria, caso a menina tomasse conhecimento do episódio do motorista embriagado que acabou por jogar o braço decepado do ciclista com o qual colidiu em um córrego.
Ilustração Alex Cerveny |
Para você ver. Até a tresloucada Bucicleide tem sensibilidade para saber que é preciso orientar crianças diante da abundância de informações a que estamos expostos em um mundo em que o equivalente a 450 bibliotecas do Congresso norte-americano é produzido pela internet diariamente.
O que não significa que essa quantidade enorme de informação tenha a mesma importância daquilo que está armazenado na biblioteca do Congresso, é claro. A maioria do que se produz todos os dias é lixo na forma de frases falsamente atribuídas a Clarice Lispector.
Segundo minha amiga, o diálogo hipotético de Buci com sua filha poderia ocorrer da seguinte forma: "Mamãe, por que o motorista fugiu?". Ela lhe diria que o inconsequente tinha bebido e, mesmo sabendo que isso era errado, resolvera sair dirigindo. Depois do acidente, teria ficado com medo e fugido.
Bucicleide preparou todo um discurso sobre cometer um ato grave e não assumir a responsabilidade, sobre como dirigir um carro é uma responsabilidade de adulto e como ele acabou agindo de forma infantil. E, ainda por cima, de ele ter bebido justamente logo depois de as leis sobre álcool e direção terem endurecido... Comecei a perder o interesse na conversa. Meu olhar foi pouco a pouco desviando para os meninos. Eles pareciam os irmãozinhos do filme "Valente" depois do feitiço.
Buci continuava a parlamentar sobre pais que, na melhor das intenções, correm para aliviar a dor dos filhos. Mais uma pergunta hipotética: "Se fosse mais velho, ele faria a mesma coisa?". A pergunta é antiga. Se não existisse castigo, você ficaria?
E um sujeito capaz de jogar um braço em um córrego se apresentaria à Justiça caso o advogado não lhe explicasse as consequências que ele estava enfrentando?
Ainda estava com essa na cabeça quando me veio mais uma. "E se sua filha lhe perguntar: 'Quer dizer que ele só voltou por medo de ser pego, não porque se arrependeu?'."
Talvez você possa nos ajudar, caro leitor. O que dizer para a filha da Bucicleide?
Barbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".
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