O papa e as chaves para um novo catolicismo
Evocando o dogma central da Santíssima Trindade, três ineditismos no novo pontificado de Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, fornecem as chaves para compreender os rumos que ele pode dar à Igreja Católica Romana. Comecemos pelo nome escolhido. Como Francisco, Bergoglio sugere múltiplos significados para a sua liderança.
A mais óbvia é a herança de são Francisco, o mais familiar símbolo da pobreza, humildade e simplicidade cristãs. Esses traços remontam às fundações da igreja, e lembram aos fiéis nesta frenética era pós-moderna sobre como eles podem praticar sua fé e dela prestar testemunho. Ao evocar a figura de são Francisco, o novo papa talvez tenha também sinalizado à igreja, e ao mundo, a necessidade de defender o ambiente. Amante dos animais, são Francisco é a inspiração para o atual movimento ecológico dentro da ordem franciscana. Deve-se amar a Deus - mas também à Sua criação.
São Francisco de Assis foi também um instigador da reforma na igreja medieval. Seu exemplo poderia muito bem servir como um ímpeto reformista na atual igreja, tão abalada pelo enorme escândalo dos abusos sexuais, por irregularidades financeiras e, no seu topo, por disputas burocráticas internas denunciadas publicamente pelo papa emérito Bento 16.
Lidar com esses desafios exigirá um papa forte e decidido -e que veja sua missão como um líder não da instituição, mas primordialmente dos fiéis, do Povo de Deus.
Em um nível prático, a hierarquia eclesiástica deve recuperar a confiança dos fiéis se quiser atrair os recursos financeiros necessários para manter as atividades sociais básicas da instituição, como escolas, universidades, hospitais, centros paroquiais e outras. Conquistar os católicos nos EUA, histórico esteio financeiro para a igreja em todos os níveis, será crucial diante dos multibilionários acordos judiciais resultantes do escândalo dos abusos sexuais.
A adoção do nome Francisco, com tudo o que ele representa, sugere que a Igreja Católica deve voltar ao básico. Bergoglio parece estar dizendo que os crentes, e o resto do mundo, devem redescobrir os fundamentos da existência humana. Isso levou o papa Francisco a aparecer em vestes simples e a iniciar seu pontificado com uma oração de silêncio. Ele convocou a massa de crentes a meditar sobre o futuro da igreja.
MÍDIAS Citados na sacada da basílica de São Pedro, as novas mídias sociais e os avanços tecnológicos nas comunicações podem certamente ser meios importantes para a transmissão do Evangelho hoje em dia, mas Francisco está talvez nos dizendo para não fazermos deles um fim. Esse papa parece preferir a substância ao estilo, os valores à técnica.
Como várias reportagens sugeriram no período que antecedeu ao conclave e imediatamente depois, Bergoglio é uma mistura de tradição e modernidade -uma das realidades centrais na instituição de 2.000 anos, e uma categoria de análise há muito tempo empregada pelos acadêmicos para entender suas complexidades.
O nome Francisco também evoca são Francisco Xavier, um dos principais missionários jesuítas. Graças a ele, vastas áreas do Oriente, inclusive a Índia e a China, foram apresentadas ao cristianismo. Ele simboliza a presença da igreja no mundo não europeu, onde reside atualmente a vasta maioria dos católicos e dos demais cristãos.
AMÉRICAS A história missionária da igreja nos leva à segunda chave interpretativa de Francisco: ele é o primeiro papa das Américas e do mundo em desenvolvimento. No início da era moderna, com a chegada dos espanhóis e portugueses ao Novo Mundo, o catolicismo embarcou em uma campanha rápida, vasta e frequentemente violenta para cristianizar o mundo.
A Europa, outrora o coração dessa missão, perdeu o espírito de conquista ao lidar com crises internas, incluindo duas desmoralizantes guerras mundiais, no século 20. A eleição de Bergoglio confirmou o que latino-americanos, africanos e asiáticos há muito tempo já sabem: que as mais vibrantes experiências cristãs têm brotado no mundo em desenvolvimento, entre as nações pobres que aspiram ao status moderno e independente do Primeiro Mundo.
Como Bergoglio e sua geração testemunharam, o caminho foi longo e doloroso na América Latina, com a rápida urbanização, a emergência das favelas e regimes ditatoriais que mataram milhares dos seus próprios cidadãos. As primeiras reportagens sobre Bergoglio lançaram uma névoa de dúvidas sobre o seu comportamento durante a guerra suja argentina da década de 1970 e a suposta falta de uma reação vigorosa para investigar a cumplicidade da igreja argentina com os ditadores.
Os indícios sobre seu comportamento parecem inconclusivos e, assim como os historiadores há décadas debatem o papel da igreja europeia durante o Holocausto judaico, os estudiosos do pontificado de Francisco talvez criem uma polêmica sobre sua relação com os militares argentinos. Justificado ou não, esse legado acompanha Bergoglio no seu pontificado.
O mesmo vale para outros aspectos, mais positivos, da sua experiência. Como fez grande parte da igreja em outros lugares, incluindo João Paulo 2º e Bento 16, Bergoglio assimilou os pilares básicos da Teologia da Libertação latino-americana.
Ele já se referiu às crianças de rua argentinas como "escravas", e declarou que "os direitos humanos são violados não só pelo terrorismo, pela repressão, pelos assassinatos [...], mas também pela existência de condições de pobreza extrema e de estruturas econômicas injustas que originam as grandes desigualdades".
Apesar do desempenho econômico extremamente irregular da Argentina desde o final da Segunda Guerra Mundial (1939-45), Bergoglio irá representar uma região que tem demonstrado avanços na redução da pobreza, um forte aumento das classes médias e melhorias em indicadores sociais importantes. Avanços semelhantes são vistos em outras partes do mundo em desenvolvimento.
O papa Francisco, assim, representa um mundo em desenvolvimento que enfrenta dificuldades -mas para o qual o status de Primeiro Mundo não é mais uma mera fantasia. No mesmo momento em que esse mundo em desenvolvimento alcança a dominação religiosa, também conquista uma crescente influência política e econômica. Assim como João Paulo 2º ajudou o mundo a sair da Guerra Fria, Francisco pode promover mais igualdade entre as nações.
Colonizada durante mais de três séculos e submetida aos interesses da Europa e EUA nos séculos 19 e 20 -com a Igreja Católica participando plenamente do processo de subjugação-, a América Latina está finalmente alcançando sua independência religiosa com a eleição do papa Francisco.
Já faz décadas que, com aquilo que pode ser chamado de "fenômeno missionário reverso", a influência religiosa da América Latina se estendeu para fora por meio da emigração, da transmissão de ideias como a Teologia da Libertação e da exportação de clérigos e outros religiosos (principalmente de outras denominações cristãs).
Cada vez menos jovens dos EUA e Europa querem se tornar padres católicos, e ainda menos querem virar freiras. O mundo em desenvolvimento é a principal fonte de novas vocações da igreja.
A terceira e última chave interpretativa para o papa Francisco é sua ligação com a Companhia de Jesus: ele é o primeiro jesuíta a se tornar papa. Depois que João Paulo 2º. interveio na ordem jesuíta e buscou diminuir sua influência -em parte por causa da adoção de ideias e práticas radicais por membros latino-americanos-, parecia altamente improvável que um jesuíta pudesse se tornar papa.
Agora, Francisco empregará, em todos os desafios da igreja, a tradição de uma ordem que valoriza a rígida obediência ao papa, mas que também enfatiza a educação, a ciência e a tecnologia, a exploração das fronteiras do pensamento e uma espiritualidade que salienta tanto a reflexão profunda como a ação no mundo.
Como jesuíta, Francisco traz uma abordagem bem moldada e refletida para a realidade e a fé. Essa origem lhe dá as ferramentas para atuar como um guardião da fé, mas também para potencialmente levá-la a novas direções.
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