A gestão nazista na Filarmônica de Berlim
Conversando por acaso com um músico da Filarmônica de Berlim, em 1995, o historiador canadense Misha Aster descobriu que essa que é uma das mais famosas e tradicionais orquestras do mundo tinha um passado obscuro: os anos em que esteve submetida ao regime nazista.
Cinco anos mais tarde, Aster viajou à Alemanha e começou a sua pesquisa. Vasculhou os arquivos da Filarmônica, nos quais encontrou apenas o espólio dos músicos (muitos documentos haviam se perdido com o bombardeio do prédio, em 1944), e o Arquivo Federal de Berlim. Ali estavam as atas do Ministério da Propaganda, chefiado por Joseph Goebbels, a quem a orquestra ficou sujeita a partir de 1933, depois de ficar à beira da bancarrota.
Os detalhes desse pacto entre a Filarmônica e a elite política nazista, delineado sobretudo pelo grande maestro Wilhelm Furtwängler (1886-1954), estão em "A Orquestra do Reich" [trad. Rainer Patriota, Nelson Patriota e Ibaney Chasin, Perspectiva, 340 págs. R$ 70].
Por um lado, a Filarmônica estava salva financeiramente e pôde continuar tocando pela Alemanha e o mundo, difundindo a grande tradição musical do país. Por outro, tornou-se um dos principais instrumentos de propaganda de Goebbels, perdeu seus músicos judeus e era obrigada a tocar em eventos do partido hitlerista.
De Berlim, onde trabalha para a produtora Deutsche Grammophon, Aster, 34, falou àFolha por telefone.
Folha - Quando a Filarmônica de Berlim foi encampada pelo Estado nacional-socialista, não houve protestos por parte dos músicos?
Misha Aster - Houve uma intensa discussão, não só em 1933, mas antes disso. A questão era como salvar a Filarmônica, que ligações políticas e que meios poderiam ser usados para assegurar verbas públicas e garantir a sua sobrevivência.
Naquela época, já fazia muito tempo que a Filarmônica ameaçava fechar. Eles só conseguiam tocar porque a gerência da orquestra fazia tramoias com a contabilidade. A última saída foi aceitar, através do engajamento de Furtwängler, o apoio financeiro dos nacional-socialistas. Acho que a orquestra não teria confiado nos nazistas, não fosse por ele, que se responsabilizou pelas negociações e pelo futuro da Filarmônica.
Que vantagens os músicos tiveram?
Com a orquestra submetida ao Ministério de Propaganda, os salários aumentaram e eram reajustados a cada dois anos. Os músicos estavam então entre os mais bem pagos no país. Além disso, a Filarmônica era requisitada pelos poderosos, passou a tocar em eventos importantes e a ser celebrada em toda a Alemanha. Tocava nos congressos do partido, no rádio, em ocasiões especiais, como nos aniversários de Hitler.
Considerando que a orquestra estava perto da bancarrota, nesse momento ela passou ao centro do agito cultural e político. O prestígio social lisonjeava, assim como a proximidade com os detentores do poder. Muitos músicos também eram recompensados por Goebbels, Hitler ou [Albert] Speer [o arquiteto de Hitler], de quem ganhavam presentes e instrumentos.
Além disso, a orquestra viajava para o exterior e, assim, seus músicos tinham uma outra visão do que acontecia na Alemanha e no mundo. Finalmente, seus músicos foram liberados do serviço militar. Até 1944, os músicos continuaram sendo protegidos. Eles jamais precisaram pegar numa arma.
Apenas alguns músicos eram membros do partido nazista. Pode-se dizer que a maioria deles era contra o regime hitlerista?
Eu não diria isso. Os números mostram que a orquestra refletia aproximadamente os da sociedade alemã. Em 1933, dos cerca de cem membros da Filarmônica, quatro eram judeus, ou seja, um índice acima do registrado na população alemã [0,75% do total no censo daquele ano]. Já os membros do partido formavam, no final da Guerra, menos de 20% da orquestra, quase a mesma proporção encontrada na sociedade. Muitos que ingressaram no partido tiravam proveito disso e não eram necessariamente nazistas convictos. Mas isso não significa que os que não estavam no partido fossem contrários ao regime.
Pelas vantagens que tinham, não achavam necessário se filiar.
Havia pressão sobre não filiados?
Os músicos de ascendência judaica ou casados com judias só puderam continuar tocando graças a esforços pessoais de Furtwängler. Eles, sim, eram pressionados permanentemente por um punhado de músicos nazistas convictos. Havia um clima de desconfiança.
Além disso, como acontecia em toda instituição pública, a Filarmônica era frequentemente visitada por representantes do regime, que falavam de suas obrigações perante o partido e o país. Mas os músicos eram pessoas viajadas, talvez um pouco menos vulneráveis às influências do partido.
Às vezes alguns músicos chegavam aos ensaios vestidos com uniformes da tropa de choque nazista. Não havia conflitos com os demais?
Havia músicos que eram orgulhosos do partido, que eram bem ideológicos e de quem os demais precisavam se defender. Mas não houve grandes conflitos. Afinal, a vida é assim numa orquestra, um precisa confiar no outro para manter o nível musical. Eles precisavam conviver, viajar juntos etc.
Foram poucos os casos de discussão intensa. Os grandes debates aconteceram depois da Guerra. O que fazer com os colegas, músicos excepcionais, que haviam integrado o partido?
O que aconteceu com eles?
Ainda antes de serem iniciadas as medidas de desnazificação, em 1945, a orquestra já tinha posto alguns músicos para fora. Mas a maioria dos filiados do partido ficou lá. Então os próprios músicos diferenciaram entre "bons" e "maus" nazistas. Logo depois foram Leo Borchard e Sergiu Celibidache [dirigentes da Filarmônica após a capitulação] que conduziram, autorizados pelos americanos, as medidas de desnazificação e as demissões.
Um dos principais personagens de seu livro é Wilhelm Furtwängler, que deixou a orquestra em 1934, depois de conflitos com os nazistas, mas que acabou retornando. Quão próximo Furtwängler estava do nacional-socialismo?
É uma pergunta delicada. Definitivamente, Furtwängler não foi um amigo dos nacional-socialistas. Várias fontes provam isso. Mas ele era um patriota. Para ele era impossível separar-se da Alemanha e, então, se dispôs a fazer acordos e trabalhar com os nazistas. Era um idealista e isto era mais importante do que coisas pragmáticas e banais. Ele se propôs a preservar uma grande tradição cultural alemã e para isso precisou se submeter à maquinaria política do regime. Mas está claro que não foi um simpatizante do nazismo.
Como o regime influenciou o repertório da Filarmônica?
Havia poucos conflitos nesta questão. O repertório da Filarmônica já era conservador, focado no grande cânone romântico alemão. Primeiramente, por causa de Furtwängler, adepto desta tradição romântica. Ele já não tocava muito compositores como
[Gustav] Mahler, que, para os nazistas, seria inaceitável por causa da ascendência judaica. Também não tocava música contemporânea ou de vanguarda. Mas Furtwängler era amigo de [Paul] Hindemith e reconhecia a importância de [Arnold] Schoenberg, que não foram mais tocados depois de 1933.
Em segundo lugar, esses já não eram os favoritos da burguesia e, como a Filarmônica era uma empresa comercial, precisava ficar atenta ao gosto musical de seu público. Foram então pequenas as lacunas no repertório, logo preenchidas por compositores mais próximos do regime, ou pelo menos aceitos por ele, como Werner Egk.
E na época da Guerra? Podiam tocar compositores de países inimigos?
Não. Mas nunca houve uma censura. Havia vários postos burocráticos, nos quais os programas eram examinados. Mas não existia uma lista negra do que não se podia apresentar. Os mecanismos de controle ficavam nas mãos das orquestras, dos teatros e das óperas. Até 1941 [quando a União Soviética entrou na Guerra], a Filarmônica tocou músicos russos, mas mesmo depois, uma vez ou outra, apresentou peças de [Piótr] Tchaikóvski.
Em 1938, o jovem dirigente Herbert von Karajan ingressou na Filarmônica. Mais tarde, com fama mundial, foi acusado de carreirista. De que forma o apoio que recebeu dos nazistas ajudou sua ascensão?
Sua ascensão deve ser entendida dentro do contexto político. Desde o início se procurou um contrapeso a Furtwängler, que estava sempre agitando e fazendo reivindicações. Os nazistas queriam mostrar que ele era substituível.
Por outro lado, havia uma rivalidade entre Goebbels, a quem a Filarmônica estava submetida, e [Hermann] Göring [ministro do Interior da Prússia], que tinha o poder sobre a Ópera Estatal de Berlim. Göring sempre procurou um herói musical, que elevasse a fama de sua ópera. Viu em Karajan, um jovem carismático e talentoso, a sua grande chance e também o contrapeso a Furtwängler. Karajan, que na verdade venerava Furtwängler, beneficiou-se desta situação.
Os nacional-socialistas ordenaram que a Filarmônica tocasse até o final da Guerra. Como você justifica essa insistência absurda em divulgar a alta cultura musical da Alemanha?
Foi realmente injusto os músicos da Filarmônica sobreviverem, tocando Beethoven, enquanto seus colegas de outras orquestras partiam para a Guerra. Mas isso prova como a música era importante para a Alemanha. Num determinado ponto, Goebbels até quis sacrificar a Filarmônica, mas quem interveio foi Speer, que deu uma permissão especial para a orquestra continuar tocando. Acho que Speer, um homem ligado à cultura, pensou no futuro. A Guerra estava perdida, e ele não conseguia imaginar uma Alemanha sem música, sem a Filarmônica. Foi ele quem salvou a orquestra.
Seu livro saiu na Alemanha em 2007. Por que foram necessários mais de 60 anos para esse capítulo da Filarmônica se tornar conhecido?
Pesquisas intensas sobre o nazismo foram feitas na Alemanha só a partir dos anos 60, quando se procurou uma confrontação com aquele período. Mas não havia um clima cooperativo para chegar a uma compreensão. Ainda havia muita gente em posições importantes, como Karajan [chefe da Filarmônica entre 1955 e 1989], que não queriam mexer muito a fundo naquele passado. Mas depois da queda do Muro, quando essa geração saiu de cena, foi possível fazer uma pesquisa mais ampla.
Você ainda consegue ouvir a música da Filarmônica de Berlim sem pensar nessa fase de sua história?
Sim. Música é música, política é política. É possível desfrutar um concerto da Filarmônica hoje, assim como uma gravação de Furtwängler de 1942. Tons não são políticos.
As artes e o Estado
JÚLIO MEDAGLIADesde que a criação artística ganhou contornos profissionais mais elevados, da Renascença para cá, criou-se também um conflito entre os mecanismos de sua produção e a natureza de seu financiamento.O "valor de mercado" de uma atividade ou objeto artístico é algo tão complexo e diversificado como os próprios mistérios de sua criação. Ainda hoje uma máquina sinfônica, por mais que toque para plateias lotadas, jamais poderá se autossustentar. Por isso é antiga a relação da produção artística com poderes constituídos.
Se Michelangelo contou com a igreja para criar as mais belas obras da história, a Filarmônica de Berlim, tida como uma das mais carismáticas e importantes do mundo, num dado momento teve que apelar para a ajuda do Estado. No caso, do nacional-socialista.
Os Filarmônicos de Berlim, numa tradução correta de seu nome, se reuniram no ano de 1882. O grupo representava a elite dos músicos da cidade e do universo germânico, responsável pela autoria de mais da metade da música clássica ocidental.
Como o próprio nome diz, a orquestra procurou financiamentos privados além dos recursos provenientes da bilheteria de seus concertos. Apenas os melhores maestros do final do século 19 eram convidados para dirigi-la e, a partir das lideranças de Hans von Bülow (de 1887 a 1892) e de Arthur Nikisch (de 1895 a 1922), a orquestra tornou-se símbolo da excelência sinfônica.
Considerando as enormes dificuldades de sobrevivência no entre guerras, na época já liderada por Wilhelm Furtwängler, a orquestra recebeu recursos do Estado alemão. Inicialmente a orquestra e seu diretor tinham liberdade de atuação e escolha de repertorio. Mas, com o tempo, o enorme prestígio internacional da orquestra seria usado pelo 3º Reich para seus propósitos propagandísticos.
Com a radicalização dos preconceitos nazistas, a Filarmônica deixou de representar aquela redoma cultural sublime para perfilar-se aos ideais do partido.
Esse fato levou Furtwängler a abdicar sua direção e à saída de muitos músicos. Com mais de 80% da cidade destruída, a fase final da Guerra representava também o fim da orquestra, que veio a recuperar seu prestígio com a volta de Furtwängler em 1952. Depois da morte dele, a orquestra foi conduzida pelo maior maestro da segunda metade do século 20, Herbert von Karajan -aliás, ex-filiado ao partido nazista.
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